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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A VIDA DOS LIVROS

  

De 26 de maio a 1 de junho de 2025


Bernardim Ribeiro é um dos mistérios da nossa literatura. Pouco se sabe sobre ele, muito se especula. “Menina e Moça” encerra em si uma revelação sobre o fundo complexo e múltiplo, lírico e trágico, da nossa cultura.


Bernardim Ribeiro foi amigo de Francisco Sá de Miranda, mas o certo é que “Menina e Moça ou a novela Saudades” (publicado em Itália, em Ferrara, no ano de 1554) é um verdadeiro símbolo da nossa tradição lírica, bucólica e romanesca… Mas, mais do que isso, revela-nos o carácter complexo da nossa cultura. Assim começa esse texto fundamental: «Menina e moça me levaram de casa de minha mãe para muito longe. Que causa fosse então a daquela minha levada, era ainda pequena, não a soube. Agora não lhe ponho outra, senão que parece que já então havia de ser o que depois foi. Vivi ali tanto tempo quanto foi necessário para não poder viver em outra parte. Muito contente fui em aquela terra, mas, coitada de mim, que em breve espaço se mudou tudo aquilo que em longo tempo se buscou e para longo tempo se buscava. Grande desaventura foi a que me fez ser triste ou, per aventura, a que me fez ser leda. Depois que eu vi tantas cousas trocadas por outras, e o prazer feito mágoa maior, a tanta tristeza cheguei que mais me pesava do bem que tive, que do mal que tinha». Para Pina Martins, a história de “Menina e Moça” é apenas uma novela sentimental. «Há que lê-la e não subentende-la. Há que interpretá-la à luz das categorias do seu tempo e não do nosso…». O romance principia com o monólogo de uma jovem que não conhecemos nem de nome nem de condição, num processo que parece seguir a antiga tradição lírica e lembra as cantigas de amigo. A jovem protagonista queixa-se de uma dolorosa separação e de mudanças que a atiraram para o desterro de um monte solitário, onde está há dois anos. E vai-nos contar o que ocorreu dias antes, estando mergulhada numa solidão sem medida. Viu então a manhã formosa por entre os prados verdejantes do vale, sentando-se debaixo de um freixo, à beira-rio, e então numa ramada vem poisar um rouxinol. A ave canta um triste trinado e cai morta na corrente larga da água, que a arrasta para longe. Aproxima-se então uma mulher idosa e então com ela a jovem inicia uma conversa em torno das desventuras de cada uma. Esta contou-lhe então a maldição daquele lugar, em que dois amigos acabaram mortos à traição, deixando sós as suas amadas. Entra aqui a tradição conhecida dos relatos de amor cavalheiresco, na linha de Amadis de Gaula. Assim se conta a história do cavaleiro Lamentor, chegado de longes terras, acompanhado de duas irmãs, Belisa, dele grávida, e Aónia. Belisa dá à luz Arima, mas morre quando dá à luz. Num momento inesperado e trágico, Lamentor mata um cavaleiro que se dedicava a guardar uma ponte e chega um desconhecido, Binmarder, que se apaixona por Aónia e pela sua extraordinária beleza. Temos, assim, três núcleos do enredo: Lamentor e Belisa, que correspondem ao início do relato, Binmarder e Aónia; e, por fim, Avalor e Arima… Os dois amigos que marcam a tragédia são Binmarder e Avalor e entre os dois há uma geração de permeio, que vai de Aónia a sua sobrinha Arima, órfã de Belisa. Cabe dizer que Aónia e Arima encontram destinos semelhantes; amam e são amadas por homens comprometidos anteriormente com Aquelísia e a Senhora Deserdada. Binmarder e Avalor estão condenados a viver o sofrimento da separação. Aquelísia ama Binmarder que ama Aónia, que por sua vez é obrigada a casar com um vizinho. A Senhora Deserdada ama Avalor que ama Arima. Encontramos, assim, um mundo de amores e desencontros – num romance que termina de modo inesperado com uma dama ultrajada nos seus desejos amorosos a pedir ajuda a Avalor… O amor e o sofrimento estão, assim, sempre presentes. E é a saudade ou soydade que faz Lamentor ficar para sempre ligado à memória de Belisa, como Avalor à esperança de encontrar Arima. A saudade, como lembrança e desejo, surge como expressão do sofrimento e da esperança, alimentados pela separação e pela ânsia de regresso, numa perspetiva religiosa e amorosa, que Pina Martins considera cristã, e que Helder Macedo prefere interpretar à luz da tradição judaica. Bernardim é, assim, um símbolo da tradição do amor saudoso que vem dos trovadores…Com uma ou a outra das influências, a verdade é que Bernardim Ribeiro é, simultaneamente, marcado pela fundo cristão e pela marca judaica. Estamos perante uma cultura diversificada e complexa, que se torna reveladora de uma capacidade para ir ao encontro de realidades diferentes.


Guilherme d'Oliveira Martins

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