A VIDA DOS LIVROS
De 16 a 22 de junho de 2025
A publicação do Dicionário da “Geração de 70”, em coedição da Imprensa Nacional e da Presença, constitui um momento especialmente importante no panorama cultural, sobretudo graças à extraordinária colaboração que foi possível reunir, numa ação que durou cerca de trinta anos, envolvendo os melhores especialistas sobre o século de oitocentos.
A minha homenagem vai, antes de mais, para as minhas colegas Ana Maria Almeida Martins e Manuela Rego, sem cuja determinação e conhecimento não teria sido possível chegarmos a bom porto. E se falo de quem hoje merece homenagem, começo por referir o saudoso editor Francisco Espadinha, que, desde a primeira hora, esteve de acordo em lançar a iniciativa, sendo sucedido por Manuel Aquino e pela equipa da Presença. Duarte Azinheira na Imprensa Nacional compreendeu o caráter de serviço público do Dicionário e garantiu que o mesmo pudesse ser concretizado em condições de qualidade. Não podemos esquecer Eduardo Lourenço, autor da Introdução, que sempre incentivou esta obra que envolveu sessenta e oito colaboradores. Infelizmente, muitos desses autores não puderam chegar connosco ao termo da jornada e salientamos os seus nomes: A. H. de Oliveira Marques, António Machado Pires, António Monteiro Cardoso, Afonso Praça, António Pedro Vicente, Embaixador Dário Castro Alves, Eugénio Lisboa, Joaquim-Francisco Coelho, José-Augusto França, José Augusto Seabra, João Bigotte Chorão, Joel Serrão, Luís Francisco Rebelo, Luís Sá, Raul Rego e Rui Feijó. A sua presença física faz-nos muita falta, mas fica a sua afetuosa recordação pela memória que nos deixaram e pelos textos impressivos que estão connosco.
Chamámos a esta geração paradoxal e simbolizámo-lo no diálogo final de “Os Maias” entre Carlos e João da Ega. “A poesia e a reflexão de Antero de Quental apontam num sentido de uma liberdade estoica, mobilizadora de vontades. O diálogo entre Carlos da Maia e João da Ega tem contornos paradoxais, pois o pessimismo não impedia que ainda desejassem correr para apanhar na Rampa de Santos o Americano como símbolo do progresso, e Jacinto e Zé Fernandes ou Gonçalo Mendes Ramires não desistiam de vislumbrar um outro futuro; o mesmo se diga de As Farpas de Ramalho e Eça ou do Portugal Contemporâneo de Oliveira Martins finalizando com a metáfora entre o sono e a capacidade de despertar, ou do Zé Povinho de Rafael Bordalo Pinheiro, disposto a largar a albarda, com Ramalho a dizer: ‘um dia virá em que ele mude de figura e mude também de nome, para, em vez de se chamar Zé Povinho, se chamar simplesmente Povo’. O sopro mítico e simbólico deixado pela Geração de 70 é o do sentido crítico, da dureza sem apelo nem agravo, da mobilização de vontades e da recusa da oscilação entre a glória e a vergonha. Sermos nós obriga a recusar a ilusão”.
Onde está o paradoxo? No contraponto entre a crítica severa e inexorável e a determinação em querer tornar melhor a sociedade mercê de um espírito saudavelmente reformista. E como Eduardo Lourenço refere, trata-se de compreender o carácter precursor de quem acreditava não ser possível viver sem ideias. Lembremo-nos, por isso, do momento crucial em que se realizaram as Conferências do Casino Lisbonense, em maio de 1871, enquanto em Paris, na sequência da Guerra Franco-Prussiana, a cidade estava a ferro e fogo a viver os dias da Comuna. “O que é novo na Geração de 70 é que ela começa como manifestação literária que toma rapidamente – talvez por causa da consciência que já tinha Antero de Quental, de uma espécie de missão – um carácter de intervenção com características que ultrapassam a literatura para se tornarem um acontecimento de natureza cultural. Logo nas primeiras manifestações adivinha-se que está em curso uma espécie de revolução cultural, coisa que o Romantismo só o é a título literário; e mesmo se o é no plano político, os dois estão separados”. Eis a originalidade do que designamos como “geração”, que marcou decisivamente o país, muito para além do tempo fugaz que lhes foi dado viver. E o que é extraordinário tem a ver com a independência de cada um dos seus membros e a complementaridade dos respetivos contributos. Nas suas diferenças, há um pensamento comum, que se torna perene, e que permite uma influência transversal nas gerações que se seguiram, quer no tempo, quer nas diversas famílias de ideias. Essa é a razão que explica ter chegado a sua influência até aos nossos dias, independentemente de vogas e de tónicas, para além da literatura.
Em vez da futilidade das circunstâncias, podemos encontrar a arguta consideração dos problemas essenciais. Os temas do atraso e da decadência ocuparam especialmente esta geração. E o certo é que, como Eduardo Lourenço salienta, o tempo foi temperando as análises e a questão da decadência tornou-se mais nuancée do que foi apresentada por Antero no Casino Lisbonense. “A verdade é que esse mito criado pela ideia de um atraso objetivo de Portugal manifesta-se não apenas naquilo que nós chamamos a vida material da sociedade, que era visível em relação a outros paradigmas, mas em relação áquilo que eram as expressões mais avançadas do progresso material noutros países da Europa, sobretudo nos países de ponta. A comparação é sempre feita não com aquilo que eram as condições de vida da sociedade, mas com a imagem que aqui havia dessas sociedade mais avançadas”. Tratava-se de recusar o fatalismo do atraso, buscando as razões objetivas para essa distância, no sentido de as superar através de medidas concretas, capazes de obter resultados positivos. A ligação aos primeiros românticos, de que o contacto direto com Herculano foi um exemplo, e a herança transmitida do século XX, envolvendo a Renascença Portuguesa, a Seara Nova até ao Orpheu permite entender que pôr Portugal ao ritmo do progresso constituiu uma marca indelével de quem manteve um sentido de atualidade e pertinência que nos conduz à importância do papel dos clercs na sociedade contemporânea. Eis por que razão este Dicionário se revelou como paradigmático, na sua conceção e na sua execução. A mobilização de um conjunto tão diversificado de colaboradores e o próprio tempo de execução correspondem a uma preocupação de abrangência e abertura, que poderia ter ficado pelo caminho, mas que foi possível completar. Estamos perante uma obra de análise e de síntese, que os leitores e a posteridade julgarão, sendo evidente que a diversidade de pontos de vista pode ajudar-nos a compreender o carácter inequivocamente paradoxal de uma Geração claramente influente, ainda hoje.
Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença