A VIDA DOS LIVROS
De 13 a 19 de outubro de 2025
No centenário de José Cardoso Pires, assinalamos a apresentação do filme de Mário Barroso “Lavagante”. Trata-se de um tema clássico de amor e desengano que aqui lemos em paralelo com a “Tosca” de Puccini, e que nos põe perante as questões da resistência e da liberdade…

“Lavagante” é um história de amor e enganos, dentro dos cânones clássicos, que parte do cenário da crise estudantil de 1962, marcado pela ação repressiva da polícia política da ditadura, pela censura, pelas perseguições, pela repressão e pelas prisões no contexto da revolta dos estudantes. Usando o preto e branco, o realizador dá-nos um ambiente cinzento e depressivo que marca o tom geral dessa circunstância. O argumento é de António-Pedro Vasconcelos a partir da última obra de José Cardoso Pires. O filme de Mário Barroso chega às salas de cinema por ocasião do centenário de José Cardoso Pires, autor de um esboço de romance, que tem o título “Lavagante – Encontro Desabitado”, publicado em 2008 por Nelson de Matos, e que A.P.V. aproveitou bem nas suas potencialidades dramáticas, suscitando um diálogo que dá força própria ao enredo, que suscita um paralelo interessante com as personagens de Puccini. O medo, a censura, a PIDE, o apetite pelo poder e a chantagem coexistem entre si num movimento incessante, em que o amor, o domínio psicológico, a sedução e o desejo se entrelaçam com especial intensidade, dando-nos um enredo em que o desenvolvimento fílmico dá à obra uma dimensão de grande intensidade, superando o carácter incompleto e quase experimental do texto de Cardoso Pires. Pode, assim, dizer-se que a dupla António Pedro Vasconcelos / Mário Barroso alcançaram um patamar de maturidade para a obra, graças ao diálogo que estabeleceram com a “Norma”, enquanto obra consagrada.
Partindo do título, Cecília (Júlia Palha), estudante de Arquitetura, é o isco perfeito; Daniel (Francisco Froes) é a presa. A metáfora que está em causa é a do Lavagante, em que o animal vai engordando a presa, na circunstância, o Safio, inelutavelmente constrangido, até este ser devorado, em virtude de ficar aprisionado pela gordura que o impede de se libertar… Deste modo, António Pedro Vasconcelos interessou-se pelo tema porque encerra um grande conflito e porque poderia ajudar os mais jovens a perceber o antigo regime. No momento da edição póstuma, Nelson de Matos descreveu o conto inédito como uma história de amor, no contexto concreto de um dilema bem português, envolvendo uma estudante, filha de uma família tradicional, um médico e um membro da polícia política, Salaviza (Diogo Infante). Com as devidas distâncias, encontramos um paralelo verosímil com o cruel chefe da polícia, o Barão Scarpia, que cobiça Tosca e usa o seu poder e influência para separar esta de Cavaradossi. Cecília parece resistir, como Tosca, não se dispondo a assumir um sacrifício inimaginável. Mas tudo se precipita. A realidade contrariará qualquer razão. Também Cecília revelará á polícia o esconderijo de Daniel, como aconteceu com Angelotti. E então o médico parte para o exílio, no estrangeiro, como se pusesse fim à vida, ciente de que Cecília tinha intervindo junto do Salaviza, qual Scarpia, para o libertar, no que considera um negócio abjeto. Mas o sentimento que resta à jovem é insuportável, e daí escolher o mesmo destino de Tosca, como acontece com as grandes protagonistas românticas.
Mário Barroso procedeu assim a uma leitura muito atenta não apenas do texto de Cardoso Pires, mas também de uma crescente aproximação a Puccini no desenrolar dos acontecimentos. Como diz Jorge Leitão Ramos; “Particularmente gratificante é ver (…) Júlia Palha com um papel a pedir-lhe mais do que a beleza física onde se destaca; os diálogos (sobretudo os de sedução) entre ela e Francisco Froes são de uma enunciação preciosa, a partir de uma escrita refinada (tendo na base a fidelidade a Cardoso Pires)”. (Expresso, 3.10. 2025). Tudo visto e ponderado, presenciamos neste filme as seguintes características: uma fidelidade clara à ideia essencial do texto da novela deixada pelo romancista; o recurso às lições dos grandes mestres, desde a escrita até ao relato cénico; de Stendhal a Visconti; um equilíbrio entre o romance e a tragédia; e a consideração de Cecília ao lado das grandes heroínas românticas. A própria Cecília faz a ligação entre as diferentes ordens de questões em presença. Os “Cahiers du Cinéma” nas suas mãos, as citações e as aproximações a Norma, ou a iniciação à ópera, tudo isso é apresentado de modo a entrarmos no enredo, mesmo com dispensa de um narrador. E assim o filme torna-se uma reflexão pedagógica sobre uma geração que procura libertar-se de constrangimentos sociais e políticos.
Voltando ao caso da ópera de Puccini, se o cenário do início do século XIX nos apresenta a ofensiva de Napoleão e a oportunidade para se falar de hesitação e de audácia, o período recordado agora põe a tónica na guerra das colónias, que aparece como um pano fundo inútil, num mundo “desabitado”. Essa circunstância agrava os dilemas, até ao momento em que surge a vítima da tentativa de colocar uma bomba e a necessidade de amputar dois dedos de um jovem… Mas, no fundo, a grande dúvida romanesca advém da circunstância de haver a confiança que se quebra perante um regime policial que se intromete na simples e complexa teia de relações de amor e desengano.
Guilherme d'Oliveira Martins
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