Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

A VIDA DOS LIVROS

  
De 20 a 26 de outubro de 2025


No encerramento das comemorações do segundo centenário do nascimento de Camilo Castelo Branco (1825-1890), a sua memória deve ser recordada.


Camilo Castelo Branco é um caso singular na literatura portuguesa. Foi o nosso primeiro profissional da escrita e assim se fez respeitar como um autor aclamado pelo público leitor. A sua produção literária, que continua a ser apreciada, chega aos nossos dias preservando a sua força essencial. Há uma considerável distância no tempo, mas no essencial é a compreensão do género humano que está em causa. É, assim, ilusório o debate clubístico entre os camilianistas e queirosianos. Estamos perante artistas da mesma arte, ambos com um nível excecional, mas dispondo de um perfil radicalmente diferente. Antes do mais, o percurso de vida do autor de Amor de Perdição é marcado por vicissitudes que o aproximam dos acontecimentos ocorridos em Portugal no dealbar do liberalismo constitucional, nas suas diferentes vertentes, resistência e incentivos, o que nos permite compreender quer as raízes profundas da sua inserção no país tradicional, quer o confronto com a lógica dos ambientes citadinos.


Camilo encarna, a um tempo, o país fiel às suas tradições e a sociedade que anseia modernizar-se. Veja-se como nos conflitos civis que abalaram profundamente os portugueses e no imaginário subjacente a tais contradições, Camilo faz opções genuínas, até divergentes, indo ao encontro de sentimentos profundos que procuram seguir não só uma continuidade histórica, mas também a consciência popular. Lembremo-nos das apreciações sobre o movimento da Maria da Fonte, verdadeiro levantamento de um conjunto de amazonas de tamancos, tornado vivo nas memórias do Padre Casimiro, no ano de 1846, onde uma certa saudade articula as componentes paradoxais desse estranho episódio, que constitui matéria-prima para um fecundo manancial romanesco. Dir-se-ia que a reminiscência miguelista, já enterrada há mais de uma década, renascia num outro tempo e num outro contexto, apesar da demarcação evidente, para reconstruir a sociedade nova de constitucionalismo liberal. E assim, concordamos com Hélia Correia quando nos diz que Maria da Fonte sobressai, aliás, no conjunto da sua obra pelo modo seguro, diríamos, convicto, diríamos sincero, com que o autor reúne os seus conhecimentos, as inflexões de estilo, as gradações de orador apaixonado que ora ironiza, ora vitupera, ora se indigna, para com este texto servir a causa do progresso, do liberalismo, do espírito científico” (Prefácio a Maria da Fonte, Ulmeiro, 1986, p. 14). E aí deparamo-nos com o formal desmentido da lenda que circulara, e que alimentara, de que fora lugar-tenente de Mac-Donell. Já quando lemos A Brasileira de Prazins deparamos com os ingredientes fundamentais do panorama social, a consideração das contradições políticas e sociais, com a chegada de um falso D. Miguel e a exigência de reparar naquela sociedade um compromisso social que obrigaria a encontrar novos caminhos. E Camilo Castelo Branco é autor e consequência de tudo isso, e sente no íntimo de si os movimentos subterrâneos da comunidade, centrífugos e centrípetos, que constituem fundamento de um panorama narrativo inesgotável.


O romancista compreendia bem que não é possível entender o teatro humano sem referências históricas. Nesse sentido, quem melhor conhece Camilo sabe que era um bibliófilo com provas dadas e que o estudo da História foi sempre uma constante da sua vida intelectual. Por exemplo, Oliveira Martins tinha especial admiração por Camilo e considerava o parecer do romancista como marca de grande rigor, quer quanto ao conteúdo quer à formulação e ao idioma. Sabemos mesmo que no caso da História de Portugal o historiador procedeu a correções ou precisões a partir da opinião camiliana, já depois da publicação da primeira edição da obra. E o certo é que estamos perante um exímio leitor e um criterioso crítico. É exemplar o modo como presenciamos a integração dos textos na matéria e no período a que dizem respeito. O profissional da escrita surgia assim como um executor exímio da sua arte e um mestre artífice disponível para partilhar com outros que ele respeitasse os seus conhecimentos e as fontes de que dispusesse. A feitura da História de Portugal constitui exemplo sobre como o autor constrói as suas obras. Os elementos disponíveis que chegaram aos nossos dias não mostram a versão original da obra, que se terá perdido nas andanças tipográficas, mas permitem tomar contacto com uma cuidada e meticulosa intervenção do escritor, em especial na revisão e nos acrescentos a que procede. Como diz Eduardo Lourenço, dando sequência à leitura camiliana: «num século tendencialmente positivista, Oliveira Martins é ao mesmo tempo hiper-racionalista e intuicionista. Ou mesmo mitólogo. […] Sobretudo, num tempo genericamente eufórico e culturalmente humanista a ele propõe — a meio caminho entre Schopenhauer e Nietzsche — uma espécie de pessimismo não niilista, mas trágico pelo papel que confere aos indivíduos e em particular aos representativos — de responder à Fatalidade em termos de vontade e de energia, introduzindo assim o humano, mesmo se precário ou vão, no não humano». E o romancista afirma que “nesta História de Portugal há a largura dos grandes aspetos sociais dados a factos que pareciam pequenos e escurecidos em meio de outros mais característicos”. O historiador generaliza luminosamente “com uma grande harmonia de plano organizador, agrupando factos desconexos talvez com a cronologia, mas moral e politicamente harmónicos. Em poucos traços essenciais resume-se um período de história, uma anedota, um caso despercebido e sem o selo de notável importância sociológica, tratado (…) consoante o modo familiar de Taine, abre-nos a porta da vida íntima de uma época”, juntando ironia e realismo. E se um crítico disse que a História se lia aprazivelmente como um romance, o certo é que tal não pode ser levado à conta de um demérito. De facto, e esta História lê-se devagar e atentamente, devendo ser melhor entendida e apreciada por aqueles que houvessem colhido uma imperfeita, senão falsa, compreensão da vida portuguesa no estudo das crónicas. E Camilo não se impressiona com as quebras eruditas, já que na obra no seu todo prevalece a argúcia crítica e a visão do conjunto e do fundamental. E assim descobrimos no genial romancista o leitor atento do poderoso cultor da História com compreensão do essencial das personagens e dos acontecimentos. Camilo Castelo Branco está vivo na sua obra e no seu testemunho. Olha-nos ainda com intuição extraordinária, e não o esquecemos. 


Guilherme d'Oliveira Martins

Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

2 comentários

Comentar post