A VIDA DOS LIVROS
De 27 de outubro a 2 de novembro de 2025
«Novas Fases da Lua» de João de Melo (D. Quixote) é um diário dos anos de 2017 a 2024 (com exceção de 2020 e 2022) no qual encontramos o pulsar da vida cultural pela pena de um grande escritor.

O diário de um escritor é sempre a revelação apetecível de um retrato do mundo através do testemunho de quem procura ir além das aparências e do prazo curto. João de Melo é um excelente cicerone, que nos conduz por caminhos muito sedutores que nos ajudam a compreender o tempo e as pessoas. A cada passo encontramos autores e acontecimentos que seguimos com um incontido prazer, pois além da sedução da escrita podemos usufruir de uma leitura qualificada da realidade cultural que nos cerca. Em 17 de fevereiro de 2019, ouvimos o autor: “Ponho-me a imaginar a minha biblioteca sem mim, ou seja, depois de mim. Todos estes livros têm a marca das minhas mãos, uma história silenciosa que um dia se calará comigo. Dói-me imaginar o destino que os levará a outros olhos e a mãos diferentes das minhas. Perder-se-ão as dedicatórias dos autores, a minha leitura deles, os milhares de livros lidos sobre os quais se apagará a luz e a gratidão dos meus olhos. Houve um tempo em que as bibliotecas representavam pequenos tesouros familiares que os filhos herdavam com proveito e alegria. Hoje ninguém quer bibliotecas particulares: todos os lugares estão cheios e saturados delas – acabarão num sótão ou numa cave escura e coberta de pó, ou nas mesas de rua dos vendilhões de livros em segunda mão, comprados a pataco como pechinchas de ocasião. (…) Toda a vida a comprar e trazer livros para casa, e depois este logro, esta inutilidade alheia”. Estamos aqui no coração deste diário, de modo a que possamos usufruir da essência da memória, para além do desaparecimento do tempo. Olhe-se a lembrança de “Ana Karénina”, aprendendo “com os mestres a simplicidade profunda, o segredo discreto do génio, a linguagem natural da literatura. A grande literatura faz-se com a paciência laboriosa do inventário, com atenção e rigor máximo no pormenor”. Eis como um livro se mistura com a vida do leitor, e a biblioteca é a grande representação do mundo em que cada um de nós se insere. Tolstoi torna-se, assim, nosso companheiro. E lembramos Vargas Llosa a ensinar-nos que “devemos organizar a vida como se fossemos viver indefinidamente. De maneira que a morte seja como um acidente”. Assim a literatura e os livros tornam-nos participantes de um tempo eterno… “A literatura mudou o curso dos meus dias. Deu-me no mundo um conhecimento bem mais vasto do que as minha origens. Nem eu sei que espécie de vertigem explica a minha necessidade vital de cultura, dos livros próprios e alheios, do que mim se irmana ao ler e amar os livros dos outros e de ser lido e amado por eles”. E assim nos deparamos com a fascinante leitura de “Astronomia” de Mário Cláudio, em que as personagens não têm nomes: são os Pais, os Tios, as Criadas, o Menino, o Rapaz e o Velho. Assim, o leitor descrê do teor pessoal da leitura e fixa-se na ficção biográfica. A realidade e a imaginação misturam-se, e entramos de pleno no mundo de uma realidade que nos faz assumir a transição entre o sonho e o mundo concreto, como sombra de várias sombras.
E de súbito encontramos a criada de Herculano, convencida de que o historiador era um preguiçoso, por levar os dias sentado a escrever. Assim convivia com essas sombras míticas, projetando-as para além do tempo. No diário os temas sucedem-se, e o memorialista depara-se num passeio ao Sol de Inverno com um bairro novo cujas ruas têm nomes de escritores. Rua Vitorino Nemésio é paralela à de Jorge de Sena, e perpendicular à Alameda António Sérgio. Numa bela metáfora, os habitantes das estantes de uma biblioteca ocupam os espaço público. Tudo a partir da recordação do “poeta preclaro e secreto no seu género miúdo, prosador de luxo em várias frentes de escrita”. Temos, pois, o genial autor de “Mau Tempo no Canal” e dos contos magistrais de “O mistério do Paço do Milhafre”. E a escrita do diário flui, rápida e apaixonante. Depois de Nemésio, vamos ter com Raul Brandão e as suas “Memórias”. “Vê-se quando se fixa em testemunhos de bastidores. Não faltam motivos de interesse a prenderem-me à leitura desta obra sintomática: lá está o prosador emérito, tão subtil como expressivo, com uma linguagem dúctil e surpreendente, que nunca nos deixa indiferentes. Às vezes diz mais uma frase isolada do que alguns de nós em longos e amargos parágrafos”. E não se esconde a admiração por Aquilino, o sábio criador verbal que remexer fundo na linguagem e traz a superfície a nova língua portuguesa”.
Lembrando o seu tempo em terras de Espanha, o cronista afirma: “Pudesse eu ter meios para tanto, vinha viver aqui, podendo em Barcelona ser português, espanhol e catalão, em simultâneo, desde sempre, para sempre”. Há um sentido especial de grandeza, na arquitetura e no urbanismo, que nos aproxima de sermos ibéricos. Eu conheci melhor João de Melo nas andanças da Educação. Tive grande gosto em contar com a sua colaboração numa ideia com virtualidade indiscutíveis – usufruir da experiência dos escritores e artistas em itinerância nas escolas. Diz-nos João de Melo: “Fui um professor seguro da sua competência e dos seus deveres. E dos seus afetos. Revi nos alunos não a minha juventude mas a deles num país a abrir-se a novas práticas pedagógicas, novos direitos no exercício da experiencia escolar e democrática. A vida dividiu-me entre a docência e a literatura. Passei a ser o ‘escritor da Escola’”. A escola primária da Achadinha não se esquece e as raízes estão sempre presentes, entre mil afetos. Essa ligação à terra e à casa que o viu nascer e crescer é muito forte. A cada passo vem essa recordação intensa. Mas o escritor não esquece a imposição consumista do público e a influência desse modismo nos editores. “As editoras pedem-nos romances, só romances e nada mais que romances. Instalou-se de tal ordem esta ditadura do gosto sobre a condição literária, que tudo parece adverso e exige coragem, afinco, resistência ao lado da pequena minoria que frequenta a chamada short story e ainda dela se orgulha. Como eu”. E ainda esta mentalidade resistente sente-se quando o autor se rebela quanto ao conselho de poupar por não adquirir livros em papal, em benefício de obras no império digital. João de Melo partilha connosco pertinentes reflexões sobre o mundo contemporâneo. Não esconde preocupações com as tergiversações do Presidente Trump, com as estranhas cumplicidade com Putin e com a evolução da China: “Converteu-se o PC em conquistador do capitalismo dos outros. Não se percebe o que vai lá dentro, que regime é o deles com o partido único, um regime pouco ou nada comunista que catapulta sobre nós um imperialismo económico, algo de obscuro que nos vem de longe e de cima, lá de um alto a que não chega o orgulho europeu de cada pais, e menos ainda a união da velha Europa”. O Médio Oriente é também motivo de atenção. “Em Gaza morre-se por tudo e por nada. Morrem crianças, mulheres e gente velha só por isso: por existirem”. Por outro lado, “Ninguém sabe até onde irá Putin na sua sanha antieuropeia. O déspota do Kremlin começo a ameaçar-nos com as suas bombas atómicas. E com uma terceira guerra mundial. Morre gente tão boa, dia a dia – e o escroque sempre tão cheio de saúde e de veneno”. O perigoso mundo continua a rodar e as perplexidades vão-se acumulando, ao ritmo de um diário… É tempo de atenção e cuidado.
Guilherme d'Oliveira Martins
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