A VIDA DOS LIVROS
Sentimos em «Eduardo Lourenço: A História É a Suprema Ficção», entrevista de José Jorge Letria (Guerra e Paz, 2014), a força de uma extraordinária paixão por Portugal e a demonstração da sua atualidade. O pequeno livro merece leitura atenta, para que daí partamos para o contacto direto com uma bibliografia muito rica do entrevistado a exigir melhor conhecimento.
UMA FORTE PAIXÃO POR PORTUGAL
«Nós temos oito séculos de independência, porque mesmo o famoso episódio espanhol é uma coisa que tem outras regras. Não foi propriamente um país que devorou outro. São dois países que se conservaram, mesmo durante aqueles famosos sessenta anos, ao lado um do outro, como duas heranças de dois reis, ou mesmo de um rei com duas heranças». Quem o diz é Eduardo Lourenço (E.L.), um caso de curiosíssima e determinada paixão por Portugal, pelo seu mistério, pela sua perenidade e até pela sua fragilidade e imperfeição. Essa paixão levou-o, no esteio de seu mestre Joaquim de Carvalho, a uma constante procura das razões profundas de uma quase improbabilidade – uma vez que, para um analista exterior, razoavelmente desatento, é difícil de explicar como, numa Península Ibérica constituída por várias autonomias, se afirmaram a partir do século XII duas referências fundamentais: uma mais claramente atlântica (enraizada na influência mediterrânica) e outra continental, mais tardiamente impulsionada para as navegações do mundo. O diálogo entre José Jorge Letria e Eduardo Lourenço, realizado em 2011, traz-nos não só a pertinência do entrevistador e a lucidez do ensaísta, mas sobretudo a procura de pistas para a compreensão de um tempo presente pleno de dúvidas. Na distinção clássica de Arquíloco, celebrizada por Isaiah Berlin, é a curiosidade da raposa que prevalece sobre posição do ouriço. «Vivacidade ímpar», como disse José Gil. «É uma coisa muito particular. A nossa História é uma História singular em vários aspetos (afirma-nos E.L.) e sobretudo numa coisa, felizmente para nós e às vezes até de mais: somos um país dos menos dramáticos da história europeia, embora com grandes episódios shakespearianos». Tivemos os Descobrimentos e a Inquisição, apesar de pequenos encontrámos soluções não apenas para sobreviver, mas também para «sermos os primeiros a ter mundo e a dar mundo ao mundo, como vem nos “Lusíadas”». Fomos sendo um pequeno país maior do que ele próprio – que se dissolveu no mundo. E «essa famosa dissolução, dita na “Mensagem”, de facto é a nossa dimensão messiânica, a nossa dimensão poética. Sem essa dimensão, nós ficaríamos muito mais pequenos do que já somos». E é nestes termos que E.L. confia num destino europeu, que nos proteja de «uma subalternidade definitiva da História que nos ponha fora da História». E aqui Portugal e a Europa surgem com os destinos intimamente ligados.
MILAGRE QUASE CONTÍNUO
Portugal é um milagre quase contínuo – assumindo-se o ensaísta como Édipo que interroga a esfinge. Como para Fernando Pessoa, Portugal olha para Ocidente e interroga o futuro do passado. O ensaísmo do autor de «Portugal como Destino» é, assim, a procura de compreender Portugal, a tentativa de adivinhá-lo, de viver com ele na sua diversidade e no seu enigma – perscrutando o devir. Daí que a «heterodoxia» seja uma procura original, descomprometida, de uma alma em comum. «Heterodoxia é uma opinião diferente da ortodoxia (esclarece o entrevistado), entendendo-se ortodoxia religiosa propriamente dita. Portanto o meu livro é também um pouco ambíguo, porque em relação à ortodoxia política profana propriamente dita, e que era encarnada naquela altura pelo poder soviético, as minhas contas eram bastante claras: não queria». E se, no final dos anos quarenta e nos anos cinquenta, a demarcação de E.L. pareceu a muitos eminentemente política, a verdade é que o tempo veio a revelá-la com muito maior profundidade e intensidade, O heterodoxismo de Lourenço tem a ver com a «visão religiosa do mundo». O certo é que na ordem profana os problemas tendem a resolver-se por si, mas no campo do pensamento as coisas são diferentes – já que são a «vocação universal» e uma «questão de salvação» a estar em causa. «É a questão de Deus em última análise, e essa continua realmente viva porque realmente não tem solução». Seguindo os caminhos de Camões, Vieira, Antero e Pessoa, E.L. vai além do imediato e do material, questionando abertamente o espiritual.
A ALMA E O MUNDO CONFUNDIDOS
«A alma e o mundo estão confundidos um com o outro, de maneira que eu tento fazer a história dessas perceções, desse sentimento». Afinal, aí o ensaísta encontra-se com António Sérgio, na subjetividade, mesmo tendo sido seu crítico, e prolonga as «famosas» reflexões das «causas da decadência dos povos peninsulares», em síntese com o «sentimento trágico da vida» de Unamuno, que tão bem conhece e assume. Nesse ponto, vai aos mitos e usa-os em dois sentidos: como elementos críticos, à maneira de Oliveira Martins, e como fatores de revelação, chegando-se a Camões, Antero e Pessoa. «A História é a ficção das ficções». Lourenço adora-a por ser, de facto, a suprema das ficções, como mito em construção – acusando a contemporaneidade de perder o sentido da História. A Europa deixou de ser «a barquinha que foi à Índia, que foi ao mundo inteiro». E o pensador olha o destino português com distância e proximidade, com sentido crítico e poético – provavelmente assumindo o lado judaico da memória, que não esquece Jerusalém, «mesmo quando se está no exílio (…) no sentido da diáspora». Nunca ele está tão próximo como quando, vendo de fora, assume-se plenamente como um crítico atento do que se passa dentro das fronteiras. Entretanto, o mundo mudou, nada ficará como dantes, e esta crise financeira e de valores é significativa. Depois de 1989, a Europa deixou de estar dividida pela guerra fria, mas está entre parêntesis. Prolongou-se na América, mas hoje é continuidade dela neste «Ocidente que não sabe o que é e o que há de fazer». No entanto, a juventude europeia tornou-se cosmopolita e a mobilidade é a sua regra, ficando a dúvida sobre o que ficará dos destinos que conhecemos. «O nosso destino neste momento é como o das famílias ricas, que foram ricas e agora já não têm os meios condizentes. Apesar disso, não se vive em parte nenhuma do mundo melhor do que na Europa (…), e isto a todos os níveis (…). Hoje a gente passeia-se aqui na Europa e, mais ou menos, é tudo igual. É um continente que tem uma coesão de ordem civilizacional e de memórias muito profundas, mesmo na sua inorganicidade que é superior a outras que têm uma inorganicidade estática em função das suas vocações imperialistas, imperializantes, mas que ainda não têm meios para levar isso a cabo». Há, porém, um «drama europeu», que deverá agravar-se se não dermos a volta, já que a Europa poderá ser objeto de «predação contínua». Como obter os recursos suficientes para que o país seja soberano? Como garantir que o velho continente não seja irrelevante? Vivemos entre o risco de dois ocasos. Como sair daí?
Guilherme d'Oliveira Martins