A VIDA DOS LIVROS
De 31 de março a 6 de abril de 2014
Quando se inicia o mês em que celebramos os quarenta anos da revolução democrática de 25 de abril de 1974, há um livro que merece ser relido atentamente, para percebermos como foi possível pensar os acontecimentos de então para além do imediato – trata-se da obra de José Medeiros Ferreira - «Do Código Genético no Estado Democrático» (Contexto, 1981).
ESPÍRITO ATENTO E ARGUTO
Começo por citar o que escrevi há dias, quando nos fomos despedir do autor que recordo: «O José Medeiros Ferreira é um dos espíritos mais argutos que conheço. Gosto sempre de o encontrar. O seu fino humor, a ironia servem uma capacidade única para perscrutar a história, compreendendo-a. (…) Por momentos, recordo o dia em que nos conhecemos, na Assembleia Constituinte, quando o jovem deputado, da geração de 62, prolegómeno decisivo da revolução de 74, defendia que houvesse debate político antes da ordem do dia, numa câmara democrática e não meramente técnica. Era a democracia que estava em causa. Nunca a democracia está completa ou perfeita. Não por acaso, compreendeu bem, antes de tantos outros, o papel dos militares na transição do regime». Por outro lado, «“Europa Connosco” (bandeira de Mário Soares) traduz o binómio essencial Europa e Democracia. É o código genético da democracia que importa aperfeiçoar. Com entusiasmo, Medeiros Ferreira, usando palavras certeiras, mas um pensamento solidamente fundamentado, fala da questão democrática, de uma democracia de cidadãos, da dupla legitimidade europeia – entre os Estados-nações e o compromisso dos cidadãos. Como poderá funcionar a Europa sem vontade política, sem defesa supranacional, sem orçamento que se veja e sem parlamento bicamaral? É preciso um Senado com representação igualitária de todos os Estados, e não um Conselho Europeu intergovernamental e fraco. Estivemos ali, horas esquecidas. Lembrámos Garrett e Antero. Fomos até aos bravos do Mindelo. Num ápice, quisemos desfazer ilusões. Talvez a Europa possa ter saída, em havendo nervo e vontade…» (Sol, 21.3.14).
UMA TESE INESPERADA E CONTROVERSA
Gostaria de me ater no referido livro à tese para o Congresso da Oposição Democrática, escrita a cerca de um ano de distância de 25 de abril de 1974, elaborada em Genebra «em longos e suaves passeios no tranquilo Jardin des Bastions. A sua redação (diz-nos o autor) foi toda praticamente feita na Biblioteca Pública e Universitária (BPU) no mês de janeiro de 1973. Aí dizia, e com que rodeios, que seriam as Forças Armadas a derrubar a ditadura! Os meus queridos amigos da esquerda, mesmo os mais abertos à História e à inovação, ficaram escandalizados. Segundo alguns deles o exílio estava a separar-me da experiência concreta. Quando cheguei a Portugal eram eles a apoiar as teses vanguardistas do MFA e eu a combatê-las! Pois dissera que as três metas após o derrube da ditadura – democratizar, socializar e desenvolver – só seriam alcançadas através da democracia política…». Este breve testemunho é muito sintomático, quer da dificuldade em romper com a situação existente antes de 74, quer de um contexto internacional heterogéneo e complexo, insuscetível de conter um só caminho ou uma transição razoavelmente linear. As histórias de Portugal e Espanha, no tocante à evolução política na saída dos regimes autoritários, não eram comparáveis. A situação africana, a necessidade de uma solução política para a guerra, as contradições das duas superpotências da altura, as hesitações de Marcello Caetano, a existência no caso português de poderosos fatores externos – tudo isso levou a que a «evolução da continuidade» não tenha funcionado. Por outro lado, a experiência portuguesa de 1974 e de 1975 permitiu configurar, para o caso espanhol, uma solução gradualista e pactuada (protagonizada pelo Rei e por Adolfo Suarez), que doutro modo não teria conduzido aos resultados imediatos alcançados. Samuel Huntington tem, por isso, razão ao colocar a revolução portuguesa como a pioneira na terceira onda das democracias (a primeira corresponde ao liberalismo – 1828 a 1926; a segunda ao pós-guerra – 1943-1962; e a terceira a uma alteração de circunstâncias internacionais que vai de 1974 ao fim da guerra fria). Foi a consideração de elementos novos que levou Medeiros Ferreira, de algum modo contra corrente (e com as cautelas naturais de estar a trilhar um caminho não partilhado), a lançar inesperadamente a hipótese militar. E compreende-se que tenha havido tanta surpresa, já que os paradigmas mais próximos na história política portuguesa eram o sidonismo e a ditadura militar de 1926.
COMO CONTAR COM AS FORÇAS ARMADAS?
«Está (…) paralisado o regime e os interesses que lhe animam a existência perante o problema colonial mas não o pode estar o País (afirmava o texto). Este tem de impor urgentemente uma política de descolonização». E seguiam-se, na reflexão do jovem ativista da crise académica de 1962, então exilado na Suiça, os temas: Descolonizar, Socializar, Desenvolver e Democratizar. No campo da descolonização: Portugal deveria «funcionar em relação aos novos países assim criados como fator de uma soberania destes, sobretudo no período sempre decisivo de acesso à independência». Quanto à socialização: «a fase de desenvolvimento económico, social e político da maior parte dos países europeus também é indicativa das possibilidades materiais e humanas de se construir aqui um socialismo diferente e mais avançado do que aquele praticado noutros espaços». Nota-se a influência do «espírito do tempo», que a evolução da história viria a atenuar, não só no compromisso democrático alcançado, mas também na evolução do pensamento do autor da tese. No tocante ao desenvolvimento, «a independência da Nação e a presença de Portugal no mundo dependerão do fortalecimento do território pátrio com equipamento capaz de o valorizar para além da sua dimensão». Por fim, urgia salvaguardar o pluralismo democrático: «a democratização da sociedade portuguesa não só constitui imperativo político como ainda encontra na necessidade de definir um projeto nacional razão da sua urgência». É no contexto desta análise dinâmica da sociedade, que Medeiros Ferreira afirma: «as Forças Armadas são, hoje por hoje, uma instituição essencialmente nacional. Perscrutando o conjunto dos corpos constituídos da sociedade portuguesa, diremos até que é o Exército a instituição que mais se confunde com a Nação». E mais adiante, vem a precisão da linha preconizada: «o papel das Forças Armadas, sempre decisivo num processo de reestruturação da Nação, encontra condições de desenvolvimento extraordinário no estado atual de representação política das classes trabalhadoras e das forças democráticas em geral». Tratava-se, no fundo, de proceder por parte das forças sociais e políticas a uma reformulação da «doutrina sobre as Forças Armada, não esquecendo que nos tempos que correm a sua existência é garantia da Nação». Lido à distância, este texto revela-se de uma importância significativa, não tanto por ter sido prenunciador do que, de algum modo, veio acontecer, mas sim pela compreensão dos fatores democráticos e da sua evolução. A democracia pressupõe a participação dos cidadãos, a salvaguarda dos direitos fundamentais, a defesa da coesão económica, social e territorial, o primado da lei, a legitimidade do voto, a legitimidade do exercício, a preservação da justiça e do desenvolvimento, o equilíbrio de poderes e das instituições – já que o contrato social depende das pessoas e das comunidades, dos cidadãos e da sociedade organizada (e, em falando de instituições, bem sabemos o que significou em 1958 o abalar da «frente nacional» do Estado Novo, com a candidatura presidencial do General Humberto Delgado e com a rotura do Bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes). E compreende-se que J. Medeiros Ferreira lembre no cair do pano da apresentação do seu livro: «procurei constantemente intervir no desenvolvimento de dados genéticos do regime democrático que favorecem as condições de crescimento da dignidade humana». Afinal, quarenta anos depois de abril, do que se trata é de considerar que a democracia está sempre por realizar-se e por completar, é algo de atual e perene, que só se afirma pela crítica, pela liberdade e pela cidadania.
Guilherme d'Oliveira Martins