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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

A VIDA DOS LIVROS

 

 


De 25 a 31 de agosto de 2014

 

A publicação de «Retratos de Camões» (editada por Guerra & Paz e pela SPA, Sociedade Portuguesa de Autores) constitui uma justa homenagem ao labor pedagógico de Vasco Graça Moura, trazendo para a ribalta uma personalidade quinhentista fundamental que tão pouco conhecemos.


GRANDE ADMIRADOR DE CAMÕES
Vasco Graça Moura manteve durante a sua vida de homem de cultura uma grande admiração por Camões – e podemos dizer que essa sua relação permitiu uma melhor compreensão do lugar excecional do épico na literatura portuguesa. Ao longo do tempo, e desde relativamente cedo, a aura de Camões foi-se formando e consolidando pela necessidade de encontrarmos um símbolo nacional unificador, sobretudo para momentos especialmente difíceis. Entende-se, por isso, que o século XVII tenha sido uma circunstância propícia, em virtude do domínio castelhano protagonizado pelo Duque de Olivares, contra os compromissos assumidos nas Cortes de Tomar por Filipe I. Perante a ameaça da perda de autonomia ou da afirmação de uma intolerável dependência, nada melhor do que a identificação com o poeta que tão bem soube interpretar a «nossa alma», na feliz expressão de Eduardo Lourenço. Assim como Dante soube identificar-se com o povo de Florença na viagem imaginária ao Além, Camões escreveu «um livro de paixão e amor sem igual pela pequena casa lusitana», dando testemunho sobre uma viagem até aos confins da terra, ditada pelos seus «erros, a má fortuna e o amor ardente», assumindo a celebridade ambígua, de receber, a um tempo, a coroa de louros da glória e a coroa de mirtos, «para servir de modelo romântico a todos os poetas malditos»… Por isso, passados os tempos da Restauração, chegaríamos à onda romântica, ao longo do século XIX, que trouxe à ribalta a continuidade da consagração do «símbolo da Pátria». Garrett considera, assim, o épico como bandeira da renovação literária, de reconhecimento da tradição e da regeneração da pátria liberal, como já fizera o mais singular dos árcades, Bocage, e o fariam diversas gerações marcantes, até às respostas republicanizante e socializante, desde a Geração de Setenta à Renascença Portuguesa. Mas Vasco Graça Moura soube sempre ir além dessa simbologia, dando um sentido autêntico e atual à memória camoniana, justificando plenamente a consideração do dia de Camões como dia de Portugal, à semelhança da hagiografia cristã. Para o poeta e ensaísta contemporâneo, a qualidade intrínseca de Camões, a sua força cultural e literária no sentido universalista, nem sempre entendida além-fronteiras, é que importaria cultivar e desenvolver.

 

CONHECER O HOMEM PELO RETRATO
É o Camões poeta e artista, homem do Renascimento, inovador da língua e das ideias, que Vasco Graça Moura admirava profundamente e que considerava dever ser mais atentamente estudado, lido e compreendido. O exercício de apresentar em oitava rima «Os Lusíadas» aos jovens de hoje, recorrendo essencialmente ao génio camoniano, é a melhor prova da consciência que o poeta tinha da importância da força criadora de Camões na cultura portuguesa – demonstrando a injustiça de um certo esquecimento do poeta em benefício do mito nacional. A recente publicação de «Retratos de Camões» (editada por Guerra e Paz e Sociedade Portuguesa de Autores) constitui uma justa homenagem ao labor pedagógico de Graça Moura, trazendo para a ribalta uma personalidade quinhentista de que tão pouco conhecemos, em termos biográficos, mas cuja obra é de tal modo importante, que leva ao dever de aproximarmos o autor dos leitores de hoje, afastando um véu que tantas vezes dificulta o reconhecimento do valor excecional da obra. Sabemos que a lírica é mais apetecível e acessível, e que o cânon que ela pressupõe nos aproxima mais de Camões, mas VMG sempre procurou dizer-nos que é o grande poeta no seu todo que importa perceber, desbravando-se a sua obra fecunda. E Eduardo Lourenço tem-lhe dado plena razão, numa convergência de visões que resulta de um diálogo intelectual muito significativo e de uma evidente complementaridade nos modos de encarar o lugar do autor de «Os Lusíadas» nas culturas da língua portuguesa. «Camões fez mais do que pintar-nos. Deu-nos o palco do mundo, celebrou nele a nossa aventura descobridora e simbólica, em tais termos que não parece ter-nos deixado outra alternativa como entidade coletiva do que refazer sem fim a viagem do Gama, ou ficar de braços cruzados na praia deserta do Restelo e lamentando-nos do que fomos e já não somos, assistindo humilhados à aventura dos outros» (in «Poesia e Metafísica – Camões, Antero, Pessoa», 1983).

 

A CÉLEBRE FIGURAÇÃO DE FERNÃO GOMES
Em «Retratos de Camões» partimos da mais antiga iconografia até aos contemporâneos Júlio Pomar, João Cutileiro, José Aurélio e José de Guimarães. E nesse percurso, ao procurarmos encontrar o rosto de Camões, descobrimos incentivo para que a leitura da obra nos ajude a vê-la como espelho onde se projeta a nossa «casa lusitana». O certo é que a imagem de Camões chegou primeiro ao público a acompanhar a sua biografia. Manuel Severim de Faria apresenta-o em «Discursos Vários Políticos» (1624) e, meio século depois da morte, o seu retrato surge na publicação em Madrid da obra épica, as «Lusíadas Comentadas», por quem pode ser considerado como o maior camonista de sempre, Manuel de Faria e Sousa (1639). A memória iconográfica e a tradição coletiva seguiram essa precoce representação… E o certo é que até aos anos 20 do século XX, só os retratos referidos eram conhecidos. Em 1924-23 Affonso Dornellas deu a conhecer dois outros retratos que tinham ficado ignorados até essa altura: o de Fernão Gomes e a chamada miniatura da Casa Rio Maior. Finalmente, em 1972, por ocasião do IV Centenário da publicação de «Os Lusíadas» surgiu uma nova representação, dita da prisão, dada a conhecer por Maria Antonieta Soares de Azevedo. Tudo indica que tanto o retrato da prisão como o de Fernão Gomes foram feitos em vida do poeta, enquanto o da Casa Rio Maior será de elaboração póstuma. A célebre figuração de Fernão Gomes (executada entre 1573 e 1576) só é conhecida através de uma cópia, do século XIX, feita a partir de um desenho que se encontrava na posse do marquês do Louriçal, que se terá perdido, apresentando dois adesivos, tendo sido achado depois do terramoto nas ruínas do Palácio da Anunciada, propriedade dos Louriçal. A miniatura da Casa Rio Maior é colorida e foi encomendada em Goa por Fernão Teles de Menezes, sendo o épico figurado com o símbolo da glória. O desenho tosco de Camões na prisão (Moçambique ou Goa?) - «preso e tendo aos pés quem quis perdê-lo. Pintado nas Índias e foi do próprio» - não deixa grandes pistas, mas merece atenção… É a partir destas referências que chega até nós a representação que Severim descreveu como «de meã estatura, grosso e cheio do rosto, e algum tanto carregado da fronte, tinha o nariz comprido levantado no meio, e grosso na ponta; afeava-o notavelmente a falta do olho direito, sendo mancebo teve cabelo tão louro, que tirava o açafroado; ainda que não era gracioso na aparência, era na conversação muito fácil, alegre e dizidor (…) posto que já sobre a idade deu algum tanto em melancólico». «Retratos de Camões» permite-nos, afinal, aproximar-nos do símbolo, superando-o… «Que se lhe redobre em memória / o que em vista lhe faltou»…

Guilherme d'Oliveira Martins