A VIDA DOS LIVROS
De 20 a 26 de julho de 2015.
Joel Serrão escreveu «Da Regeneração à República» (Horizonte, 1990) sobre a segunda metade do século XIX português, que é um dos períodos mais interessantes e complexos de uma longa História, ainda que cheio de paradoxos e contradições – e que permite entender o século XX.
TEMPO DE ACALMAÇÃO
Saídos de uma longa guerra civil, que marcou a primeira parte do século, os portugueses conheceram uma acalmação política a partir de 1851, que se traduziu no mais longo período de vigência de um mesmo texto constitucional – a Carta Constitucional de 1826, completada pelo Ato Adicional de 1852. Dir-se-ia que uma assembleia constituinte saída do golpe de Estado da Regeneração (1851) procedeu a um certo renascimento moderado e compromissório da Constituição de 1838, de modo a pôr termo ao Cartismo de Costa Cabral, substituindo-o pelo que viria a ser o rotativismo, entre regeneradores e históricos. O «cabralismo» fechara-se sobre si mesmo e deixara campo para uma grande convergência política que culminaria no movimento de 1851. O machado de guerra era enterrado, na condição de haver uma partilha de poderes e influências. E se Alexandre Herculano inspirara e de certo modo preparara o golpe vitorioso de 1851 perpetrado pelo Marechal Saldanha, também animara a seguir a criação de uma esquerda histórica, de modo que os vencedores e as suas clientelas não se eternizassem no poder, suscitando uma alternância à maneira inglesa. A verdade é que, sem intervenção política direta, Herculano teve indiscutível influência na queda de Costa Cabral e na estabilização constitucional. O Ato Adicional tinha dezasseis artigos que previam: a eleição direta dos deputados e o alargamento do sufrágio, embora mantendo-se censitário; o direito das Cortes intervirem na Administração pública mediante comissões de inquérito; a abolição da pena de morte nos crimes políticos; a consagração do princípio de que as colónias poderiam ter leis especiais decretadas pelo Governo ou pelos governadores em casos especiais quando não fosse possível recorrer às Cortes. Nasceu assim um regime parlamentar liberal, assente no rotativismo, em que coexistiam o Partido Regenerador, primeiro dirigido por Rodrigo da Fonseca Magalhães e depois por António Maria Fontes Pereira de Melo, principal artífice da política de melhoramentos materiais (fontismo), e o Partido Histórico, liderado primeiro pelo Duque de Loulé e depois por Anselmo José Braancamp, figura íntegra celebrizada pela grande competência administrativa e financeira. A rotação permitiu que tivesse lugar uma das fases mais fecundas da história constitucional portuguesa. Com mais ou menos vicissitudes, a alternância durou até 1891, tendo em 1875 nascido o novo Partido Progressista, dirigido por Braancamp, resultante da fusão entre o Partido Reformista do Bispo de Viseu e o Partido Histórico, de Anselmo José. Em 1885 seria aprovado um segundo Ato Adicional impulsionado por Fontes, envolvendo a redução da legislatura de 4 para 3 anos, a supressão do pariato hereditário, a restrição do poder moderador do rei, o qual passava a ser exercido sob responsabilidade dos ministros, sendo regulado e limitado o direito de dissolução parlamentar, além da consagração expressa dos direitos de petição e de reunião… Já na fase final da monarquia constitucional, sob o peso da crise financeira e das consequências da bancarrota (1892), veio a consagrar-se um derradeiro Ato Adicional (1895-96), pelo qual o rei passou a dispor do poder para dissolver a Camara dos deputados e para convocar eleições sem as restrições previstas em 1885. Os últimos anos do regime viriam, porém, a ser marcados por forte instabilidade, com o envolvimento do rei na política dos partidos, que culminaria no regicídio (1908).
DO ROMANTISMO AO NATURALISMO
Este quadro constitucional permitiria, contudo, a existência de um longo período de respeito essencial pelas liberdades públicas, o que favoreceu o debate de ideias e a vitalidade da criação cultural. Camões tornou-se símbolo e referência dessa regeneração, que a República (de Pascoaes a Cortesão) designaria como renascença. É o tempo de Camilo Castelo Branco e Júlio Diniz, mas também da questão do Bom Senso e do Bom Gosto (1865), das Conferências Democráticas do Casino (1871), da Geração de Setenta, de Antero de Quental, de Eça de Queiroz, de Oliveira Martins, de Ramalho Ortigão e de Guerra Junqueiro ou de Cesário Verde. No entanto, apesar desta vitalidade, o crescimento muito rápido das economias europeias levou a que o desenvolvimento português tenha ficado muito aquém do que ocorreu no velho continente. Se é verdade que, na senda da primeira geração liberal, de Garrett e Herculano, houve uma geração de políticos e intelectuais a reivindicar a aproximação à Europa, sem prejuízo da salvaguarda das especificidades nacionais, o certo que entre meados e o fim do século XIX houve uma clara divergência no tocante ao produto per capita, chegando-se à primeira década do século XX com uma distância não alcançada anteriormente. O PNB per capita português que era de 86% da média dos países desenvolvidos em 1860, passa para 45% no início do século XX. Isto poderá parecer estranho, quando assistimos a uma política de melhoramentos, tantas vezes à custa da dívida pública. No entanto, o desfasamento em relação à Europa deveu-se ao facto de a sociedade industrial ter permitido um crescimento muito mais rápido dos países desenvolvidos, graças às economias de escala. Pesou o diferente potencial de crescimento entre os países industrializados e as economias mais pobres como a portuguesa, presa à ruralidade e ao atraso. Apesar das importantes mudanças estruturais operadas pela Regeneração, como nos casos dos transportes, da modernização das instituições, bem como do alargamento e aperfeiçoamento dos mercados dos fatores de produção, a verdade é que o potencial se viu reduzido, facto compreendido em muitas das reflexões e propostas dos melhores analistas nacionais. Alguns números merecem especial atenção. Se pensarmos nos citados melhoramentos, a rede rodoviária portuguesa era de apenas 476 quilómetros construídos, contra 11 754 em 1900, e a rede ferroviária tinha 69 quilómetros contra 2867 nas mesmas datas (segundo os estudos de Maria Fernanda Alegria). Olhando as Finanças Públicas, temos uma progressão moderada das receitas públicas depois de 1850, com um crescimento lento do produto interno, o que conduziria à crise financeira dos anos noventa. As despesas efetivas do Estado correspondiam a 4,3% do PIB na década de 1850 e a 5,6% na década de 1890. No entanto, segundo Maria Eugénia Mata apenas 38% das receitas da dívida pública foi aplicado em despesas de investimento reprodutivo, sendo o restante absorvido por gastos correntes – com forte penalização das novas gerações. Para Magda Pinheiro, o investimento em despesas reprodutivas foi mais lento do que o desejável. Nestes termos, a eficiência dos melhoramentos ficou muito aquém do que se pretendia, no sentido de criar recursos para amortizar o endividamento. Os encargos com a dívida pública passaram de 20,5% na década de 50, para 40,2 na década de 90. Veja-se, pois, que o modelo não se revelou sustentável. Se a Regeneração atraiu investidores para as obras públicas, outro tanto não aconteceu no fim do século, em face da ineficiência do modelo económico e da incapacidade reformista dos governos, incapazes de aproveitar condições excecionais de estabilidade institucional. Tudo se agravou em virtude da crise internacional do fim do século.
UM FIM DE SÉCULO ATRIBULADO
Os anos 1890 foram de recessão económica: o PIB a preços correntes cresceu apenas 1,6% ao ano na década de 1889 a 1899, enquanto na década anterior tinha registado um crescimento de 3,3% ao ano. O certo é que os investimentos públicos, nomeadamente em infraestruturas viárias praticamente pararam na década de 90, pelos constrangimentos financeiros internacionais (bancarrota da Argentina e quebra da banca britânica – com abandono do padrão-ouro e suspensão do pagamento de parte da dívida externa, que culminaria no Convénio de 1902). Das crises que atingiram a economia portuguesa na segunda metade do século (1853-58; 1867-70; 1889-92) a última foi a que mais afetou as condições de vida dos cidadãos, desencadeando subida de impostos, aumento do desemprego, baixa de salários reais, redução do horário de trabalho e migrações internas (para o sul e para as cidades) e externas (para Espanha e Brasil). Jaime Reis interroga-se sobre o porquê da persistência do atraso português na segunda metade do século XIX, em especial no tocante à expansão do sistema educativo, sobretudo quando «estava definitivamente redistribuída a propriedade da Coroa e da Igreja, tinham sido abolidas as principais instituições do Antigo Regime e estavam efetivamente reconciliadas as grandes famílias políticas que se tinham guerreado com ardor durante as primeiras décadas de Oitocentos. Os motins ocasionais que ainda se registaram em reação a questões fiscais ou de propriedade, ou simplesmente, por manipulação de políticos desencantados e descontentes, estavam intensamente longe das convulsões populares de 1808-1809 ou da cruel violência das guerras civis dos anos 1830 e 1840». Surge, assim, a dúvida sobre a razão por que uma sociedade com relativa estabilidade não foi capaz de reorganizar a instrução pública e de combater o analfabetismo. E, perante o contraste com outras sociedades europeias com fortes conflitualidades, surge a hipótese explicativa de que «num quadro de maiores tensões, mais forte teria sido a vontade de educar» («O Atraso Económico Português 1850-1930», INCM, 1993). No entanto, aquilo que Miguel de Unamuno designou o «século de ouro português» permitiria lançar as bases das mudanças profundas que culminaram na democracia contemporânea. Como compreender, por exemplo, Fernando Pessoa ou Eduardo Lourenço sem essa extraordinária sementeira de ideias da segunda metade do século XIX?
Guilherme d'Oliveira Martins