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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A VIDA DOS LIVROS

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De 24 a 30 de agosto de 2015

 

Corsino Fortes (1933-2015), autor de «A Cabeça Calva de Deus» uma trilogia poética essencial para a compreensão da cultura de Cabo Verde, deixou-nos há pouco, assim como Arnaldo França (1925-2015), decano dos poetas e autor de «Testamento para o Dia Claro». Deste disse Corsino: «Arnaldo França é o primeiro nome em que se pensa quando se quer garantias de conhecimento, de cientificidade e de seriedade». Recordamo-los hoje como referências das culturas da língua portuguesa.

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UMA LITERATURA LÍDIMA

Telefonei a Vera Duarte e, com a estima grande que temos, pudemos recordar o afeto dos diversos encontros que tivemos ao longo dos anos com o amigo comum Corsino Fortes, envolvendo Germano Almeida, Fátima Bettencourt, Filinto Elísio, Manuel Brito-Semedo e José Carlos Delgado... Naquele dia, havia na cidade da Praia uma homenagem a Corsino e quis dizer a Vera que estaria presente de alma e coração, apesar da distância e da ausência física. Sentimos, no íntimo, a intensidade serena da morabeza. E nessa lembrança de bons tempos passados, falámos da língua de várias culturas e de várias línguas, da sensibilidade poética, da audácia rítmica do poeta, da Academia, das cautelas que fomos tendo na salvaguarda da diversidade cultural e linguística (no caso dos crioulos), da necessidade de um denominador comum de entendimento, assim como do sucesso alcançado pela candidatura da Cidade Velha a património mundial da UNESCO. E sobretudo recordámos intimamente os três tempos sublimes de «A Cabeça Calva de Deus»: desde as raízes antigas de injustiça em «Pão & Fonema», passando pela força esperançosa de «Árvore & Tambor», até à busca premente da dignidade humana, presente e futura, de «Pedras de Sol & Substância». E ouvimos de novo: «Os homens que nasceram da estrela da manhã / Assim foram / Árvore & tambor pela alvorada / Plantar no lábio da tua porta / África / mais uma espiga mais um livro mais / uma roda / Que do coração da revolta / A Pátria que nasce / toda a semente é fraternidade que / sangra». O ritmo poético de Corsino era intencionalmente muito próprio e inovador, ligando a oralidade e o rigor da palavra, a língua materna e a língua oficial, com o coração a bater ao compasso do encontro com o outro. Ana Mafalda Leite tem razão ao falar de um trilogia fundacional e épica da história do país (…) em que simultaneamente Cabo Verde também de novo nasce como terra, como país, como pátria, como identidade e como cultura fora e dentro do poema».

 

LEMBRAR O PADRE VIEIRA…

Tivemos oportunidade de falar longamente. E houve sempre uma convergência natural. Falar da cultura cabo-verdiana é lembrar a admiração do Padre António Vieira ao pregar na Cidade Velha, Ribeira Grande, na igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, encontrando aí clérigos mais letrados e cultos que os do reino. Era o resultado das régias autorizações para a escola de Latim e Moral (1555) e para o seminário diocesano (1570), que apenas viria a estabilizar no século XVIII, além do surgimento da rede escolar, primeiro pelo impulso local de Júlio José Dias, Honório Barreto e José da Silva Guardado e depois por iniciativa oficial, através dos Liceus da Praia e depois do Mindelo. E como foi importante o Mindelo, lembrava-o especialmente Corsino. No período 1840-1880, sente-se um romantismo originário, desde José Evaristo de Almeida, autor de «O Escravo» (1856), até à poesia de Emília dos Mártires Aguiar e Antónia Gertrudes Pusich. A partir de 1870 e até 1930, começa a pesar a influência cultural de uma identidade plural, na qual o crioulo tem expressão. Essa tendência culminará na criação da revista «Claridade», surgida no Mindelo (1936), tendo como referência Baltasar Lopes (Nhô Baltas) (1907-1989). Mestre de tantas gerações, cultor da língua e do pensamento, o autor de «Chiquinho» reganha hoje uma importância fundacional que não pode ser esquecida. Sob o pseudónimo de Osvaldo Alcântara defende uma identidade humanista e existencial, refletindo sobre a vida sofrida, o peso da insularidade e o desafio doloroso da partida emigrante para a diáspora. Alfredo Margarido fala de «Chiquinho» como um romance não português, mas do que se trata, talvez mais, é da compreensão de uma identidade diversa e complexa, típica dos mundos vários da língua portuguesa. Jorge Barbosa e Manuel Lopes representam igualmente a afirmação da cabo-verdianidade – enquanto João Manuel Varela, através de Geuzim Té Didial, recupera o mito da Macaronésia e da fabulosa Micadinaia, num regresso a antes de «Claridade» e de recuperação dos mitos. E não devemos esquecer, ainda, a revista «Certeza» (1944), mais marcada pela dinâmica social. Deve, aliás, afirmar-se que Corsino Fortes, sem esquecer a sua originalidade formal e substancial, se situa na convergência entre os claridosos e a «Certeza». Tantas vezes mo recordou. Essa pulsão social, nota-se na segunda fase da revista «Claridade» (1947-49) e na, com maior intensidade, na terceira (1958-59), – na qual a denúncia de uma dominação ancestral está presente em Ovídio Martins («Não me aprisionem os gestos»), Terêncio Anahory («Impermeabilidade»), Osvaldo Alcântara («Romanceiro de S. Tomé») e Arnaldo França («Testamento para o Dia Claro»)…

 

ENTENDER CABO VERDE E AS CULTURAS DA LÍNGUA

Ao lermos os ensaios de Manuel Duarte, Baltazar Lopes, Gabriel Mariano, Arnaldo França e Onésimo Silveira, entendemos uma fecunda tensão (e mesmo divergência) quanto à genuinidade crioula, bem como na dialética Europa / África. O tempo veio, aliás, a revelar que essa complexidade, bem como a conflitualidade (na qual a diáspora tem papel relevante) só enriquecem a cultura cabo-verdiana, numa síntese que lhe dá coerência, desde os primórdios da «Claridade» até ao presente, passando pelo tempo da independência e da influência de Amílcar Cabral. A experiência e a sabedoria de Corsino Fortes permitia-lhe compreender, como ninguém, a caminhada do povo de Cabo Verde contra todas as adversidades. Carmen Lúcia Secco refere que os cânones literários em Corsino Fortes foram «definitivamente ultrapassados». E assim fez uma releitura da «Claridade», negando a proposta de «evasionismo», afirmando «a necessidade de fecundar a esperança na transformação por dentro das ilhas». Por outro lado, contrapõe a Ovídio Martins que «já não somos os flagelados do vento leste, pois o vento tornou-se metáfora anunciadora de mudanças sociais». A literatura de Cabo Verde é muito rica, desde o épico ao irónico, desde o lírico ao trágico… Corsino Fortes cultivava o ritmo da arte e da vida, a um tempo simples e heroico. Era um cidadão experimentado, jurista, político, diplomata, poeta e sobretudo cultor da sabedoria… E fui reler Manuel Brito-Semedo, a propósito de um encontro nosso (que cito em «Na Senda de Fernão Mendes», Gradiva), sobre uma ideia síntese fundamental: «perante os discursos totalizantes europeísta e africanista provámos que uma posição rígida e extremada (…) não é senão uma visão enviesada de um todo que surgiu como resultado de um processo histórico-político-social que fez a elaboração dessas duas componentes, a africana e a europeia, e que levou à integração destas duas posições que hoje constituem a vivência cabo-verdiana». E Corsino Fortes cultivava esse diálogo.

 

Guilherme d'Oliveira Martins