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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A VIDA DOS LIVROS

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De 21 a 27 de setembro de 2015

 

Alexandre Herculano (1810-1877), fundador da moderna historiografia portuguesa foi um defensor pioneiro do Património Cultural, em especial através da revista «O Panorama». Invocamo-lo no âmbito das Jornadas Europeias do Património, do Conselho da Europa.

Untitled.jpgCaricatura de Vasco.


SENTIDO HISTÓRICO DA CULTURA

Há muitos modos de interpretar o sentido histórico de uma cultura, como a portuguesa, que, nascida no ocidente peninsular, se projetou universalmente. Alexandre Herculano foi alguém que procurou, de modo sistemático e exigente, dar-nos uma chave sobre a nossa existência histórica, sem a pretensão de a tornar definitiva ou infalível. A historiografia mais recente sente a sua influência – como o reconheceu, melhor do que ninguém, José Mattoso, ao considerar que a melhor marca que o velho historiador nos deixou não foi a da ideologia ou das suas conclusões, mas a da obrigação crítica, aliada ao rigor do método centrado nas fontes. Só seremos, pois, fiéis à lição herculaniana se prosseguirmos a sua visão crítica, centrada na procura da objetividade dos factos e dos acontecimentos. E se refiro a palavra procura é porque muitas vezes há domínios em que nos defrontamos com a dúvida ou com o dilema, quando não com a lacuna, sendo necessário não cair na tentação de simplificar ou de deduzir apressadamente. A vontade dos barões portucalenses, a importância dos municípios, o moçarabismo, a construção gradual do Estado moderno mercê da aliança entre o poder real e os municípios em contraponto ao alto clero e à alta nobreza, os efeitos contraditórios do Império, o liberalismo ideológico e político, a influência romântica – tudo isso constitui a marca própria do historiador que quis abrir horizontes críticos, muito para além das suas conclusões ou intuições. Por isso, a ciência historiográfica mudou profundamente desde o momento em que o Mestre lançou, mercê de aturado trabalho e pesquisa, bases novas. E a verdade é que esse seu indelével sinal continua presente…


DEFENDER A HERANÇA COMUM

Como o próprio Herculano confessa, disputou palmo a palmo a sua vida intelectual. Empenhou-se na Sociedade Propagadora dos Conhecimentos Úteis a defender o que hoje designamos, numa lógica ampla, como património cultural, a partir dos textos fundamentais da História e da cultura, das ciências e das artes, de modo a garantir uma instrução voltada para o melhor conhecimento de quem somos, não numa lógica fechada e retrospetiva, mas aberta e orientada para diante. Assim nasceu em 1837 «O Panorama – Jornal Literário e Instrutivo», para cuja redação Herculano foi convidado por António Feliciano de Castilho. O jornal saía aos sábados e constitui uma referência fundamental no cuidado pela instrução popular, pela herança e pela memória. Aí se publicaram algumas das «Lendas e Narrativas», e se pôs na ordem do dia a necessidade de proteger o património artístico e arqueológico. Se nos lembrarmos que «O Panorama» chegou a vender cinco mil exemplares, tendo o historiador sido redator principal de 1837 a 1839 e de 1842 a 1844, percebemos que estamos diante de um extraordinário exemplo pioneiro, que seguiu os passos do «The Penny Magazine» de Londres, da Society of Diffusion of Useful Knowledge… (1832-1845) - sendo a própria Rainha D. Maria da Glória a sócia maioritária, num capital de 10 contos de réis. Compreendia-se, assim, ao mais alto nível que uma sociedade moderna e cosmopolita deveria começar por proteger e salvaguardar o que lhe era próprio. De facto, o papel desempenhado por Herculano neste órgão de imprensa, essencialmente cultural, foi da maior relevância, merecendo essa coleção uma revisitação nos dias de hoje. Aí se levanta a voz contra a glória, o lucro e os interesses imediatos, lembrando as vagas de destruição do Renascimento e do pombalismo, apesar da desculpa neste caso da ocorrência da tragédia do terramoto. Havia, no fundo, que contrariar o «instinto bárbaro», «a malevolência selvagem» e a «filosofia da brutalidade». As muralhas antigas da Guarda, Moncorvo, Santarém e Porto eram destruídas. O arco e a torre de Álvaro Pais em Lisboa na cerca fernandina, junto a S. Roque, foram arrasados. E o cidadão Herculano levanta a sua voz na defesa da memória e da liberdade de imprensa. Dentro da mesma coerência, mais tarde, na Regeneração, encontrá-lo-emos no jornalismo político, com «O País» e «O Português», a pugnar em nome da necessidade de haver uma opinião pública, livre, ilustrada e crítica. E se falo do património cultural, devo também lembrar Almeida Garrett que, por exemplo, em «Viagens na Minha Terra» insiste especialmente na atenção e na necessidade de proteger o património antigo votado ao abandono ou à especulação. Diz-nos o escritor, a propósito dos tratos de polé sofridos por Santa Maria da Alcáçova em Santarém: «…Na Europa, no mundo todo, talvez se não ache um país, onde, a par de tão belos monumentos antigos como os nossos, se encontrem tão vilãs, tão ridículas e absurdas construções públicas e particulares, como essas quase todas que há um século se fazem em Portugal».


PATRIMÓNIO, TEMA DIFÍCIL

O tema do património cultural foi sempre controverso. Há a desconfiança de estarmos a privilegiar o passado em relação ao presente e ao futuro. As organizações internacionais que se têm debruçado sobre a matéria têm alertado para a complexidade do tema. A UNESCO e o Conselho da Europa têm procurado articular o património material e imaterial herdado com a criação contemporânea. Veja-se a Convenção de Faro do Conselho da Europa, agora a fazer dez anos –, a dizer que sem respeito pelo que herdamos estamos a condenar o que de melhor as gerações modernas estão a realizar. Os escritores, os artistas, os autores, os inovadores, os investigadores, os intérpretes, os atores, os artesãos, os críticos sabem-no, melhor do que ninguém. E, se invocamos os românticos, com a autoridade de Garrett e Herculano, fazemo-lo porque não encontramos neles a manifestação de meros estados de alma, mas a coerência entre os indispensáveis estudo e a preservação das tradições e dos testemunhos (as lendas, os contos, o teatro, os romanceiros) e a atenção aos arquivos e à procura da documentação autêntica e coeva. Naturalmente que sabemos as suas próprias limitações, mas temos de entender a força do seu apelo, para além da fronteira dos tempos. O programa era e é simples: não destruir ou deixar estragar o que existe, restaurar o que tem valor, divulgar, conservar, tornar acessível… «Nossos pais (dizia Herculano) destruíram por ignorância e ainda mais por desleixo: destruíram, digamos assim, negativamente; nós destruímos por ideias, ou falsas ou exageradas. Destruímos ativamente, destruímos porque a destruição é uma vertigem desta época. Eu ficaria feliz se pudesse, ao menos, salvar uma pedra, só que fosse, das mãos dos modernos hunos. A decadência na época em que vivemos é outra, e mais profunda. Já, não há a corrupção do gosto, o inaplicável das teorias, o erro do entendimento. (…) Em nome de um falso progresso não poupam nada»… Em Palmyra, assistimos ao inominável, no Mediterrâneo e na Europa há uma catástrofe humanitária – aqui limitamo-nos a falar de «uma pequenina luz bruxuleante», para que se salve a memória e se preserve a criação.

                                                                                                 Guilherme d'Oliveira Martins