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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A VIDA DOS LIVROS

 

De 19 a 25 de dezembro de 2016.

 

Em leituras natalícias, escolhemos três livros - «Joga-se aqui o essencial – Um olhar sobre o que somos» da autoria de D. Manuel Clemente (Assírio e Alvim); «Tudo o que Existe Louvará» de Adélia Prado (Assírio e Alvim) e «Deus, Religiões e (In)Felicidade» de Anselmo Borges (Gradiva). São três obras recentes, a merecerem uma especial atenção pela sua grande qualidade.
 

 

UM LIVRO DO PATRIARCA DE LISBOA
«Joga-se aqui o essencial – Um olhar sobre o que somos» da autoria de D. Manuel Clemente, com posfácio de António Araújo (Assírio e Alvim) é uma excelente leitura para este Natal. São textos que dizem respeito ao período de exercício do autor enquanto Patriarca de Lisboa, de 2013 até ao presente. São homílias, mensagens pastorais e intervenções em colóquios académicos e civis, além de conferências várias. É um manancial da maior importância. Estamos, no fundo, perante uma celebração viva da comemoração dos três séculos da Bula de Clemente XI, de 7 de novembro de 1716, que concedeu ao Arcebispo de Lisboa o título de Patriarca. Os temas estão apresentados por ordem alfabética, de forma pedagógica, como D. Manuel bem aprecia e sabe, e constituem uma espécie de dicionário sobre o pensamento do autor. Leia-se, por exemplo, a propósito do Amor o seguinte: «Misericórdia é a palavra nossa que traduz todos os vocábulos com que a Bíblia nos comunica os sentimentos de Deus para com o povo eleito. Amor profundamente sentido e por isso mesmo “entranhado”; compaixão indefectível, mesmo que não correspondida; atenção prioritária aos mais pobres e humildes. Assim mesmo se traduz a misericórdia divina: um coração voltado para quem mais precisa; como todos afinal precisamos, “mendigos do amor”». Afinal, o coração compassivo, representado pela misericórdia, nas suas diferentes manifestações, pressupõe a atenção e o cuidado, que nos aproxima de quem espera por nós. E é esse o desafio ético perante o qual nos encontramos. Percebe-se como aqui se joga o essencial. Do Amor a Zigmunt Bauman, passando pelo Bem Comum Universal, pela Crise, pelo Desenvolvimento, pela Espiritualidade, por José da Cruz Policarpo, pela liberdade Religiosa, pelo Papa Francisco, por Santo António, por Sophia de Mello Breyner, pelo 25 de Abril ou por Xenofobia – todos esses pontos são referências que nos tornam mais atentos e despertos relativamente aos problemas com que se defrontam os cristãos. Em cada um dos diversos temas, do que se trata é de compreender como devemos exercer a liberdade e a responsabilidade, como devemos assumir a dignidade humana, como somos chamados a responder – sobre quem é o nosso irmão; quem é o nosso próximo. É o olhar sobre o que somos. E em mais um Natal temos de saber ouvir quem mais de nós precisa. E deste modo dar é mais exaltante do que receber, percebendo-se sempre que o amor cristão, agapé, obriga a uma troca, generosa e genuína… Como diz S. Francisco de Assis: «Oh Mestre, fazei com que eu procure mais consolar/ Que ser consolado/ Compreender, que ser compreendido/ Amar, que ser amado/ Pois é dando que se recebe/ É perdoando, que se é perdoado/ E é morrendo que se vive para a vida eterna». «O Verbo fez-Se carne e habitou em nós». Como lembra ainda D. Manuel Clemente, «podemos traduzir Verbo, a palavra latina que traduz a palavra grega “logos”, com os teólogos e, antes dos teólogos, ainda, com os filósofos, quer como «razão», quer como “palavra”» - Deus comunica-Se, Deus que nós nunca vimos… Eis como os poetas dizem mais claramente do que os próprios teólogos… Neste Natal compreendamos a Misericórdia e a Encarnação do Verbo – representadas no Presépio, desde a simplicidade dos pastores à homenagem dos sábios, a começar na paradoxal pobreza da manjedoura e de um curral para acolher um Deus Menino…

 

A POESIA SURPREENDENTE DE ADÉLIA PRADO
Ainda na boa maré dos livros, refiro uma obra talvez inesperada, mas extremamente bela, um livro de poemas – de Adélia Prado «Tudo o que existe louvará» (Assírio e Alvim). Como disse Pedro Mexia, «os seus textos, que evocam com frequência um meio provinciano e pobre, têm (…) algumas afinidades com o Sul profundo da ficção de Flannery O’Connor, mas enquanto a americana era violenta e sofrida, a brasileira é vitalista e sensual. Poeta de Deus e do corpo, Adélia é também poeta do corpo divinizado e do Deus encarnado». Podemos compreender isso mesmo, lendo o poema «Antes do Nome», onde sentimos a importância da palavra, em ligação estreita com o Verbo «encarnado». «Não me importa a palavra, esta corriqueira. / Quero é o esplêndido caos de onde emerge a sintaxe,/ os sítios escuros onde nasce o "de", o "aliás", / o "o", o "porém" e o "que", esta incompreensível/ muleta que me apoia./ Quem entender a linguagem entende Deus/ cujo Filho é Verbo. Morre quem entender. / A palavra é disfarce de uma coisa mais grave, surda-muda,/ foi inventada para ser calada. / Em momentos de graça, infrequentíssimos,/ se poderá apanhá-la: um peixe vivo com a mão. / Puro susto e terror».

 

UMA LONGA EXPERIÊNCIA VITAL
«Deus, Religiões e In(Felicidade)» da autoria do Padre Anselmo Borges e prefácio de Andrés Torres Queiruga é uma reunião de oportuníssimos textos que estão divididos em três partes: O Enigma: A Morte de Deus; O Diálogo Inter-Religioso e O que traz a felicidade? Como diz o prefaciador: «realmente impressiona a longa experiência vital que está por detrás e no fundo destes textos. Experiência que inclui não só uma rica trajetória na organização de fóruns internacionais sobre o diálogo entre a fé, a ciência e a cultura, mas também amplos estudos e visitas pelo mundo universitário da Europa, e não em último lugar um intenso e vocacionado labor docente». O título remete-nos para uma atitude aberta e compreensiva sobre o fenómeno religioso e a complexidade do sagrado. E o certo é que podemos compreender que «Deus não criou por causa dele mesmo e dos seus interesses, da maior honra e glória, mas apenas por causa das criaturas, homens e mulheres, que quer ver plernamente realizados e felizes para sempre. Assim a última palavra sobre a História, e a História lê-se do fim para o princípio, não é a morte, mas a Vida, a Vida eterna, na bem-aventurança de ver Deus. Deus não é um Deus de mortos, mas de vivos». E aqui está a chave da ambivalência da Felicidade. A vida é paradoxal, é contraditória, porque a liberdade e a responsabilidade não são de sentido único. É o mistério do tempo que está bem presente. «Já Santo Agostinho se abismava perante o enigma: o que é o tempo? Eu sei. Mas, se alguém me perguntar e eu quiser responder, já não sei. Porque o passado já não é, o futuro ainda não é, e o presente nunca se capta. Ah, se soubéssemos o que é o tempo, teríamos talvez descoberto o mistério de se ser e do ser». Os gregos referiam para o tempo dois símbolos contraditórios: Chrónos e Kairós – respetivamente, o tempo quantitativo e linear, sobre o qual a humanidade não pode intervir e o tempo qualitativo, enquanto crise e oportunidade, sendo as pessoas chamadas a intervir decisivamente. O tempo cronológico e devorador e o tempo kairológico é criador. A leitura é inesgotável e apaixonante!

 

Guilherme d’Oliveira Martins

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