A VIDA DOS LIVROS
De 12 a 18 de fevereiro de 2018.
"O Clube dos Anjos" de Luís Fernando Veríssimo (D. Quixote, 2000) é um livro, onde se conta como o desejo levado ao extremo se torna destruidor. Trata-se de um tema clássico, aqui tratado com ironia, sem esquecer a dimensão trágica da vida…
VIRAR A VIDA DO AVESSO
«Quando a gente acha que tem todas as respostas, vem a vida e muda todas as perguntas». Luís Fernando Veríssimo tem o método de virar as coisas do avesso para as compreender melhor. É ele quem afirma o que acabamos de ler – e é significativo que o diga num tempo de incertezas, no qual melhor compreendemos a necessidade de estarmos atentos à alteração de circunstâncias. Num tempo de movimento uniformemente acelerado a necessidade de cultivar o paradoxo torna-se óbvia. As “Correntes d’Escritas” da Póvoa de Varzim deste ano homenageiam-no e inserem na sua revista um dossiê dedicado ao autor, e tal merece destaque, uma vez que se trata de uma justa invocação. Luís Fernando Veríssimo faz parte de uma importante tradição da literatura brasileira, onde está Millôr Fernandes e tantos outros, e que se ocupa em dizer as coisas mais sérias do mundo de um modo a um tempo difícil e desarmante, próximo mas inteligente. Do que se trata é de mostrar ao comum dos mortais como a realidade que nos cerca tem sempre o seu quê de incerto e de imprevisível. Onde menos se espera, aparece-nos na história alguma coisa que, não fazendo aparentemente parte dela, permite encontrar uma chave que julgávamos perdida. Afinal não procuramos o que perdemos junto da luz, mas devemos fazer chegar a lâmpada até junto do local em que está a coisa perdida ou desaparecida… Um dia perguntaram-lhe por que razão a raça humana não tem conseguido aperfeiçoar-se, como desejaríamos, e Veríssimo respondeu de imediato – porque usa e abusa das reuniões… Millôr diria que um camelo é um cavalo desenhado por um grupo de trabalho… Outra vez, invetivou um amigo: «não deixe que a saudade sufoque, que a rotina acomode, que o medo impeça de tentar. Desconfie do destino, acredite em si próprio. Gaste mais horas realizando que sonhando, fazendo que planejando, vivendo que esperando – porque, embora quem quase morra esteja vivo, quem quase vive já morreu». Aqui se encontra um verdadeiro programa de vida, de quem quer que não se morra de véspera… Quase viver não existe, por isso o escritor procura pegar nos acontecimentos como se fossem sempre únicos e irrepetíveis. Nesse ponto, encontramos a humanidade como referência universalista. É assim Luís Fernando Veríssimo, bem longe (ou demasiado perto) de seu pai Érico Veríssimo, o célebre autor de «Olhai os Lírios do Campo», mas com semelhante dose de talento – que nos leva a entender que o ADN de ambos é de qualidade humana muito especial. «Se o facto de ter um pai escritor o inibiu?». E a resposta numa entrevista foi a seguinte: «Conscientemente, não. Inconscientemente, talvez. Às vezes fico tentado a inventar algum drama edipiano entre meu pai e eu para satisfazer a expectativa das pessoas, mas nunca houve isso»… Compreende-se bem isto mesmo. Luís Fernando é ele mesmo, empenhado em cultivar a alegria do paradoxo e em exercitar a atenção desperta para tudo o que possa valer a pena. Mas esse gozo não esquece que felicidade é sempre uma acomodação – e o escritor negou-se sempre a acomodar-se, preferindo o desassossego. Só isso parece valer a pena, mas é mais trabalhoso.
O MÉTODO AFORÍSTICO.
Os aforismos, que encontramos nos seus diversos textos, são um meio de nos pôr a pensar. A principal matéria-prima para uma crónica são as relações humanas. Só assim é possível superar a angústia do papel branco. Este é o ponto essencial em que o escritor insiste. Nada do que é humano nos pode ser estranho, por isso a dimensão humorística apenas serve para demonstrar que não nos levamos demasiado a sério. O nosso Alexandre O’Neill com a força da sua ironia pensava da mesma maneira e por isso foi grande. E como dar importância às relações humanas se nos limitarmos a olhar o curto prazo e o superficial? Então, não é possível ir além do comezinho e do rasteiro… É por isso mesmo que Veríssimo procura a humanidade olhando para o avesso do tapete, a fim de perceber a razão de ser da beleza dos desenhos vistos do direito. A metáfora do tapete leva-nos a entender que a pessoa humana precisa de liberdade para cumprir as responsabilidades e para realizar o serviço que a vida sempre exige. E o serviço é o dom, a gratuitidade, sabendo-se que a troca estreitamente económica suscita debates e invejas. A alegria do paradoxo é o melhor modo de entender a vida como realização suprema da literatura. Luís Fernando Veríssimo demonstra-o com elementar clareza.
À VOLTA DA MESA.
«O Clube dos Anjos» conta a história de dez homens que se reúnem há vinte e um anos à volta de uma mesa para celebrarem a sua amizade. No início há as reuniões diárias no «Bar do Alberi», cujo prato principal é o picadinho de banana. Depois passa a haver jantares semanais em bons restaurantes, em que o prazer da comida requintada se torna um hábito e uma exigência. E, por fim, reúnem-se em jantares mensais nas residências dos membros do clube. É Daniel que conta a história dos dez amigos, a qual vai exigindo cada vez mais no requinte da gula, que parece não ter limites. E conhecem Lucídio, um rapaz misterioso que é exímio na arte da culinária. A procura do prazer é insaciável. Mas o caminho torna-se uma desenfreada corrida para a morte. E tudo se precipita quando Ramos parte… É a vida vivida, contraditória, irónica e trágica que aqui se manifesta. Tantas metáforas, tantas contradições…
Guilherme d'Oliveira Martins
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