A VIDA DOS LIVROS
De 25 a 31 de maio de 2020
“A Torre da Barbela” (1964) de Ruben A. (Livros do Brasil, 2020) é uma obra-prima de imaginação, de mestria romanesca e de excelente domínio da língua.
UM NOVO SISTEMA SENTIMENTAL
“Dos quarenta aos cinquenta, limpa-se a casa. Põem-se telhas onde faltam, instala-se um novo sistema sentimental, e no jardim das delícias, no passeio depois do jantar, nas madrugadas sem Deus, ouvimos uma voz que nos buzina que dali para a frente a contagem é outra”. Ruben A., cujos cem anos do nascimento agora celebramos, teve a extraordinária lucidez de escrever as suas extraordinárias memórias no momento que permitiu que usufruíssemos delas como um dos melhores exemplos da nossa literatura memorialística. O Mundo à Minha Procura (1964-68) é uma obra extraordinária, na qual encontramos uma grande personagem, multifacetada, complexa, em que o fino humor se liga ao retrato fiel do tempo, de uma geração e de uma cultura, vistas por alguém que tinha a atenção desperta para o mundo e era conhecedor como poucos, desde as raízes à atualidade, da Arte de ser português. E não esqueço, graças à amizade antiga e sólida do Nicolau, seu filho, os momentos que tenho passado no convívio da memória fascinante de Ruben. Não se entende, por exemplo, a nossa cultura sem a leitura da Barbela. E o certo é que esses momentos não têm sido apenas os da leitura e releitura de uma obra fantástica, mas também os de visita aos lugares marcados pelo percurso de vida de alguém que muito bem conhecia Portugal – desde Entre Douro e Minho, do Porto, do Campo Alegre, até ao Alentejo, passando em Lisboa pela Praça do Príncipe Real, onde veio ao mundo, e pelo Monte Olivete… As excursões e passeios mirabolantes com programas surrealistas foram marca sua… Os percursos de Orlando Ribeiro e Torga apaixonavam-no. No entanto, estes tempos, estranhos de confinamento, adiaram (apenas adiaram) o encontro que tínhamos marcado para a Fundação Gulbenkian, com a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, cuidadosamente preparado com Miguel Tamen e António Feijó e pelo Nicolau, naturalmente. Não poderemos, contudo, deixar de fazer dessa celebração a justa invocação de quem tanto merece que tertuliemos longamente sobre um espírito tão versátil e rico, cujas pistas que nos deixou têm de ser seguidas e aprofundadas.
DO CONVÍVIO À EXTROVERSÃO
“Era um homem que se ocultava no convívio e na extroversão” – disse António Quadros, quando falou dele depois da morte inesperada e absurda. “Tinha uma imparável fúria criadora. Não sabia estar parado… quase existia heteronimicamente, como o Pessoa. Havia o Ruben historiador, escrevendo livros sérios, … Havia o Ruben public-relations, literato da Embaixada do Brasil… Havia o Ruben-minhoto, apaixonado por Carreço, Afife e pela Ribeira Lima. Havia o Ruben-colecionador de cacos-velhos e frequentador de Antiquários. Havia o Ruben surrealista e louco, escrevendo livros como as Páginas”. Era isso e muito mais…E Alexandre O’Neill disse, melhor que alguém: “Ao coro de rãs, respondeu Ruben A., com algumas arreliantes dissonâncias, enfim, com o que nele era vivo pressentimento de que uma obra se faz a contrapeso do gosto mediano…” De facto, muitos não compreenderão o que escreve e o sentido da procura. Em Inglaterra no King’s College, Charles Boxer elogia-o pelas capacidades pedagógicas, pelo trabalho realizado e por ser “a vida e a alma do Departamento”. Ruben demonstra conhecimento e entusiasmo, ao falar de Fernão Lopes, de D. Pedro V, da Geração de Setenta e de Fernando Pessoa ou ao encenar o Mar de Miguel Torga. Mas, na escrita, procura novos caminhos, seguindo os passos de Garrett, que nas “Viagens” escreveu como falava, dando à língua o tom vivo do que realmente se comunica. Não lhe interessava copiar “coisas arcaicas do passado numa língua que já ninguém fala”… Mas há quem não entenda, a começar pelo próprio Salazar, que considera intoleráveis as liberdades de Páginas II (1950)… O triste episódio é bem conhecido e nada abona para quem o suscitou. João Gaspar Simões ou António Quadros, ao contrário, entenderam bem que era Ruben que estava na razão…
LIVRO INSUPERÁVEL
O romancista continua a seguir a via original de uma criatividade inconformista. Sobre Caranguejo (1954) dirá Eduardo Lourenço: “não foi nada senão bicho insólito, entrando às arrecuas e aos pinos na policiada praia lusitana que o reenviou de novo para o mar resplandecente de onde tivera a insolência de querer sair para contemplar o Sol e as estrelas”. E Maria Lúcia Lepecki não tinha dúvidas em considerar o romance como o maior… A Torre da Barbela (1964) é, no entanto, insuperável na obra do autor. E se ele amou tanto Portugal, a verdade é que, por isso mesmo, não deixou de fazer a severa crítica das limitações, invejas, mediocridades, provincianismos, como forma de as podermos superar. Jacinto do Prado Coelho fala de uma “cura de inverosimilhança”, de um retrato do aforro às tradições, da ronceirice, da tacanhez e de ridículas prosápias… E Liberto Cruz tem razão quando alerta para não se confundir o significado com o significante: o leitor “precisa sobretudo de deter-se na seriedade deste romance, atentar na ironia que o envolve, no humor que o reveste, no tom doloroso de dezenas de páginas, na amargura de tantos episódios que provocam gargalhadas salutares, na frescura sadia, na alegria de viver, que exala a cada momento” (Ruben A. – Uma Biografia, Estampa, 2012). Como salientou António Tabucchi é essencial reconhecer a vertente picaresca na cultura portuguesa, além do lírico e do trágico… Bocage, Beckford, Afonso Henriques e D. João V pontuam um enredo pleno de estranhas personagens que são muito mais do que figurantes à volta dos amores entre o Cavaleiro e Madeleine. Só, porém, alguém profundamente conhecedor de Portugal poderia escrever um romance assim, onde os anacronismos são tratados com o cuidado de darem o tom onírico, numa fusão entre tradição e modernidade, num caleidoscópio sempre variado, como assinalou José Blanc de Portugal. E é o homem crente da modernidade, que se apaixona desde cedo pela figura de D. Pedro V. Não, não é o romântico que Ruben Andresen Leitão descobre nas suas deambulações históricas, logo no final de 40. “É este Rei o primeiro homem moderno no nosso País; é ele que nos seus escritos proclama insistentemente o que a geração de 70 vai tentar realizar. É, se me perdoam a expressão, o primeiro grito histórico no século XIX, depois daqueles anos desmantelados de liberalismo duvidoso. A História não pode idealizar figuras quando elas têm valor para transcender o ambiente literário – perde-se a lenda e fica o homem na mais pura conceção de atuação vivida” (D. Pedro V – Um Homem e um Rei, 1950). É significativa a epígrafe que Ruben tira do pensamento do malogrado rei: “Escrevemos para um povo dormente a quem convém despertar; para cegos (dos da pior espécie que são os que não querem ver) a quem cumpre restituir a luz; para obstinados cuja relutância devemos vencer”… Eis o programa de vida, em que o escritor sempre acreditou. Mas Ruben A. era uma personagem. Eduardo Lourenço contou que, na véspera de defender a tese em Coimbra, convidou-o a ir ao Astória, onde o encontrou “fazendo a sua toilette como Luís XVI” – deixando a ideia de uma espécie de encarnação de Fradique Mendes. “Foi divertidíssimo. Não sei se se inventará uma personagem de romance tão singular como foi Ruben A.”… E Sophia escreveu: “Carta a Ruben A. / Que tenhas morrido é ainda notícia / Desencontrada e longínqua e não a entendo bem / Quando – pela última vez – bateste à porta de casa e te sentaste à mesa / Trazias contigo como sempre alvoroço e início / Tudo se passou em planos e projetos / E ninguém poderia pensar em despedida…
Guilherme d'Oliveira Martins
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