A VIDA DOS LIVROS
De 31 de agosto a 6 de setembro de 2020
Os «Escritos do Vintismo (1820-23)» de Almeida Garrett, Editorial Estampa, 1985, permitem-nos encontrar o mestre do Romantismo como grande cicerone da Revolução de 1820.
UMA CONTINUIDADE MARCANTE
Dois séculos de constitucionalismo são motivo de reflexão, menos no tocante aos acontecimentos originais de 1820 e mais quanto à dinâmica criada. Pode dizer-se que a matriz revolucionária sofreu entorses, teve erros e limitações, que as instituições políticas revelariam ao longo do tempo. É natural que assim tenha acontecido, uma vez que a vida pública é sempre uma projeção da sociedade e das suas características. A verdade é que o constitucionalismo tem a virtude de consagrar a aceitação da imperfeição, exigindo, porém, o seu aperfeiçoamento permanente. Lembramo-nos, assim, como Ernesto Melo Antunes, na sua coerência inabalável, em 25 de abril de 1974, colocou o Movimento das Forças Armadas na continuidade da tradição constitucional portuguesa, interrompida no seu curso histórico. E deste modo puderam ser cumpridos, no essencial, os compromissos de normalização constitucional assumidos pelo MFA. Olhando a dimensão cultural da comemoração de 1820, centrar-me-ei no testemunho pessoal e literário de Almeida Garrett, que considero paradigmática – uma vez que nele encontramos o entusiasmo genuíno de quem acreditou nas virtualidades dos valores defendidos pelos regeneradores, temperado pela reflexão crítica e pela experiência pessoal. Alguns porão em dúvida a coerência do poeta, do intelectual e do cidadão, mas o certo é que o seu percurso e a sua evolução de pensamento são perfeitamente compreensíveis porque traduzem o curso da sociedade e das mentalidades. Daí o interesse em podermos acompanhar como o escritor seguiu os acontecimentos, afinando ideias, reflexões e críticas – chegando ao entendimento sobre a necessidade de compromissos sociais e políticos capazes de preservar a identidade pátria e de seguir os movimentos emancipadores centrados na liberdade e nos direitos.
O FIM DO ABSOLUTISMO
São conhecidos os antecedentes que mais diretamente suscitaram o movimento revolucionário de 24 de agosto de 1820: o rescaldo das invasões francesas, a perplexidade decorrente da longa ausência da Corte no Brasil, a subalternização das instituições nacionais pelo domínio de facto dos militares ingleses, mesmo depois da derrota dos franceses, o sacrifício ilegítimo e brutal de Gomes Freire e dos “mártires da Pátria” em 1817, além dos ecos da Revolução espanhola de Cádis (1812), da Revolução de Pernambuco (1817), do movimento liberal espanhol de janeiro de 1820 e do juramento da Constituição de Cádis por Fernando VII. É neste contexto que intervem o Sinédrio, na cidade do Porto, com o Desembargador Manuel Fernandes Tomás, José Ferreira Borges, José Silva Carvalho e João Ferreira Viana. Decidido o golpe de Estado, os grupos militares dirigiram-se ao Campo de Santo Ovídio, constituindo-se a Junta Provisional do Governo Supremo do Reino, presidida pelo Brigadeiro António Silveira Pinto da Fonseca, tendo como vice o Coronel Sebastião Drago Brito Cabreira, com a participação, além dos principais membros do Sinédrio, de Frei Francisco de S. Luís (futuro Cardeal Saraiva) e do Coronel Bernardo Correia de Castro e Sepúlveda. Encontramos o jovem Garrett, ainda Silva Leitão, entre 1816 e 1821, estudante da Universidade de Coimbra – manifestando uma clara simpatia pelos ideais do iluminismo enciclopédico fortalecido pela Revolução francesa. É um crítico severo da decadência, da exaustão cultural e do domínio britânico. Lê Rousseau, admira a retórica jacobina, invoca o antigo republicanismo romano, e encontra entre os seus colegas um ambiente favorável à ideia de uma Regeneração revolucionária. De facto, é a Coimbra estudantil um verdadeiro alfobre favorável ao combate ao Antigo Regime. Constituía-se, assim, uma muralha contra o professorado retrógrado, o que levaria o novo reitor após a Revolução de 1820, Frei Francisco de S. Luís, a ter de impor aos docentes o ensino dos novos princípios do Sistema Constitucional. Garrett defendia ardorosamente o espírito novo. O ambiente adensara-se com as notícias da execução injusta e ilegítima dos mártires da Pátria. O futuro poeta afirma-se então como orador inflamado contra a negação do voto à massa estudantil nas eleições paroquiais para deputados; na produção dramática, ataca na farsa “O Corcunda por Amor” os reacionários, numa hilariante trama que é uma floresta de enganos e de ilusões, como no caso da intervenção de Eleutério que, para cair nas boas graças de um lente, diz exatamente o contrário do que pensa – “Isto por cá está cada vez pior. Daqui a pouco não há criados, todos são amos…”; isto enquanto na expressão trágica coloca na boca de Catão a afirmação: “Ou liberdade, ou morte, eis o meu voto”. E, após o herói ter posto termo à vida, diz-se: “Vede Expirar Catão: dentro do peito / Guardai desse romano alma e virtudes”.
LIBERDADE E IGUALDADE, MARCOS PATRIÓTICOS
Garrett sente-se imbuído dos ideais clássicos mais intensos e nobres – e em Novembro de 1820, aquando da Martinhada, diz ao Corpo Académico: “Vivamos livres… ou morramos homens”. Mais do que o desenrolar dos acontecimentos políticos, seguimos os passos do jovem poeta que exprime com entusiasmo a força mais pura dos ideais em que a sua geração acredita. Importaria defender uma solução política que favorecesse a liberdade e a justiça. Mas, ao acompanhar o curso das discussões na Assembleia Constituinte, o jovem não esconde o desencanto pela falta de audácia no domínio da Instrução Pública – “tão livre é o povo ilustrado quanto escravo o povo ignorante”, acrescentando: “o povo cuja maioridade seja iluminada, esse povo será livre, porque a pequena porção de ignorantes não basta para servir os que o não são”. De facto, exigia-se pedagogia cívica. Essa era a orientação persistente do futuro autor de “Da Educação”. Se havia nele um impulso genuinamente radical contra a tirania e a idolatria, havia igualmente uma preocupação, que se manifestará pela vida adiante, no sentido do pragmatismo e do primado da lei, de acordo com os apelos que Catão e Mânlio fazem a Bruto contra o seu radicalismo. Daí que a defesa do republicanismo sofra abrandamento, do mesmo modo que a crítica de Rousseau vai dar origem à leitura de Montesquieu e Chateaubriand. A Lei Fundamental deveria ser compromissória, reconhecer a soberania do povo e do seu poder constituinte, assegurar o sufrágio geral, que assegurasse a representatividade popular das Cortes e ser unicameral. Neste último ponto, contudo, a posição garrettiana evoluirá. Depois da Vilafrancada, interrompida a vigência fugaz da Constituição de 1822, o dramaturgo reconhece erros cometidos, desde Cádis, por se dar demasiado à democracia e nada à aristocracia. Reconhecendo a importância da Carta Constitucional de 1826, Garrett vai ser um cidadão empenhado, ativo participante da guerra civil na Regência de D. Pedro, redator dos Decretos da Terceira de Mouzinho da Silveira, constituinte do setembrismo no compromisso de 1838 e defensor do Ato adicional de 1852. Se virmos bem, a coerência garrettiana, apesar das hesitações, culminará na defesa de um constitucionalismo assente no primado da lei e nas legitimidades do voto e do exercício. A Constituição deveria ser, assim, a pedra de toque de um regime justo, promovendo um governo representativo, segurando a majestade do Povo, a liberdade da Nação, os direitos do Trono, as santidade da religião, e o império das leis.
Guilherme d’Oliveira Martins