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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A VIDA DOS LIVROS

de 21 a 27 de dezembro de 2020

A Obra Completa de Eduardo Lourenço está em curso de publicação pela Fundação Calouste Gulbenkian, tendo sido publicado o volume IX “Pessoa Revisitado – Crítica Pessoana I (1949-1982)”, coordenado por Pedro Sepúlveda.


INCERTEZA E MISTÉRIO

Muito se disse já sobre Eduardo Lourenço, mas fica sempre quase tudo envolto numa aura de incerteza e de mistério. Em longuíssimas conversas sempre o senti proteger-se, cético perante as interpretações subjetivas sobre as quais não se detinha propositadamente. Mas sentia-se nele uma preocupação de distanciamento. Um pensador que se qualificou desde muito cedo como heterodoxo, dificilmente poderia deixar-se catalogar, percebendo que haveria tentativas de diversos lados para encerrar o seu percurso num caminho preconcebido. Ao cultivar o ensaísmo, tendo presente a inspiração de Montaigne (“aquela voz que não foi escutada na aventura espiritual portuguesa”) e o exemplo de Coimbra de Sílvio Lima, o escritor assumiu com clareza um subjetivismo dificilmente capturável em qualquer preconceito – até porque, mais do que género literário, Lima considerou, e bem, o ensaio mais como “atitude de ginástica do intelecto”. “Que sais-je?” - a expressão gravada na torre do cultor emblemático do ensaio sempre esteve presente, como interrogação autêntica na caminhada deste verdadeiro buscador de enigmas. Na expressão de Filomena Molder: “Há um trabalho prévio a fazer: pensar por si próprio o homem, o que o obriga a destacar-se do que recebeu e a abrir um caminho que não está traçado: a renúncia a qualquer recado, a qualquer mandato” (Expresso, 4.12.20). “Um ensaísta é alguém disponível para pensar o que merece ser pensado e mesmo o que não merece ser pensado”. Com este entendimento, compreende-se como Eduardo Lourenço partiu da filosofia em direção da literatura, sem nunca esquecer a importância da reflexão crítica e a necessidade de descobrir a identidade cultural através da ficção e da poesia. É certo que não foi um polemista como António Sérgio, mas encontramos preocupações comuns que os ocuparam a ambos, apesar das diferenças evidentes de personalidades e de atitudes. A verdade é que tiveram mestres comuns – entre os quais Antero de Quental e a geração de 1870 e os fundadores da modernidade nacional, Garrett e Herculano, do mesmo modo que ambos seguiram a interpretação do Portugal Contemporâneo sobre as duas políticas nacionais, da fixação e do transporte e sobre a demarcação relativamente ao sebastianismo.

UMA SÍNTESE NECESSÁRIA
É comum dizer-se que pensou Portugal como identidade e enquanto visão cíclica entre o passado glorioso e o pessimismo fatalista, mas a “psicanálise mítica do destino português” é mais do que isso, é uma síntese, que deve ser vista como uma releitura crítica dos mitos nacionais. Os excessos identitários exigiriam, sim, a consideração de que, regressados da grande viagem global, somos chamados a um novo tempo de exigência europeia e de consideração dos nossos limites e vantagens, como país de média dimensão, capaz de valorizar a educação, a cultura e a ciência. Contudo, apesar de uma longa existência vivida no estrangeiro, como exilado voluntário, nunca se considerou um “estrangeirado”, uma vez que não deixou de seguir intensamente a vida portuguesa, com a vantagem de não estar preso ao imediatismo e ao confronto das capelinhas. Considerou-se sempre como um português de alma e coração, sem a desvantagem da excessiva proximidade. E assim pôde tentar libertar-se das influências e dos rótulos. Apesar de descrer absolutamente das interpretações astrológicas, lembrava o seu nascimento no fim de maio e a pertença ao signo de Gémeos – e daí a diversidade de tabuleiros em que poderia agir. Sentia-se, afinal, de algum modo, pensador de várias perspetivas, o que seria muito útil no abrir de novas pistas que ajudariam a revelar, por exemplo, o caso de um outro Fernando Pessoa, percebendo que Alberto Caeiro era diferente de Álvaro de Campos ou de Ricardo Reis, e ainda mais de Bernardo Soares.


O ENIGMA PESSOA
O fascínio pelo enigma de Fernando Pessoa tornou-se fundamental – sendo Eduardo Lourenço quem revelou a figura icónica, como referência europeia e mundial, para além das leituras paroquiais que prevaleciam antes da revelação das suas intuições luminosas. É verdade que José Régio e a presença começaram a abrir a porta para a compreensão da grande riqueza cultural de Orpheu e de Pessoa como de Mário de Sá-Carneiro, mas pode dizer-se que é o autor de Pessoa Revisitado o grande revelador da extraordinária riqueza que tornaria o poeta de Mensagem um mito cultural de dimensão superlativa. A estratégia criadora de Fernando, rei da nossa Baviera, segundo o pensador, foi a de inventar vários sujeitos virtuais que tinham uma identidade virtual. Caeiro e Reis são produtos da ficção. E Pessoa foi assim libertado do universo que criou, assumindo, ele próprio, a sua identidade como mito. O criador e a sua criação tornaram-se sujeitos de um enigma comum, que o “ensaísta” pôde revelar. E a leitura crítica dos mitos torna-se o método original de Eduardo Lourenço. E, não por acaso, afirmará que Pessoa Revisitado tem “tudo o que penso e sou, é o meu romance”. E quem conhece a obra e a influência que exerceu na compreensão e na projeção urbi et orbi do poeta, sabe que só um interrogador de enigmas absolutamente genial poderia (como um grande poeta ou romancista) contribuir para uma melhor compreensão do mundo e do tempo, através de uma relação biunívoca da ficção com a realidade e da realidade com a ficção. Fabrizio Del Dongo, Emma Bovary, Anna Karenina, Natacha ou os Irmãos Karamazov ganharam alma pelo talento dos seus autores, e puderam existir mesmo… Se a crítica literária se tornou escrita poética em Eduardo Lourenço foi porque se libertou de uma dimensão puramente técnica, para se tornar literatura viva. E é essa a originalidade do crítico. A poesia “não tem outra tradução que ela mesma” – como na imagem de Borges segundo a qual o “mapa verdadeiro da Terra seria o mapa que tivesse o tamanho da Terra” (como o escritor recordou no diálogo com Ana Nascimento Piedade – Gradiva, 2015). E assim a crítica “vai sendo atravessada por referências ao objeto estético que é construído realmente pelo poeta” ou pelo romancista, num discurso equivalente à criação poética ou romanesca… Calderón de la Barca disse que “a vida é sonho” e chegamos à importância do mito. Fernando Pessoa torna-se para Eduardo Lourenço um caso de fixação e de osmose, em que o mito nasce da não-identidade e projeta-se para além da ilusão. O que são Campos, Reis e Caeiro no romance de Eduardo Lourenço? São textos. Caeiro, como irmão gémeo de Whitman, mas diferente de Whitman, Campos como uma referência propriamente mimética de Whitman. E eis-nos perante as duas culturas que originam a riqueza literária de Pessoa – a cultura anglo-saxónica (dos tempos da África do Sul) e a mitologia portuguesa - numa confluência de que resulta a ideia de que a verdadeira aristocracia é a da inteligência, e que constitui eixo de gravidade da obra pessoana. Se Pessoa Revisitado é o grande romance de Eduardo Lourenço, Antero de Quental, como poeta e como pensador e referência fundamental da cultura portuguesa, é o indiscutível mestre, ponte entre as raízes e a modernidade – moderno pela atenção que presta às ideias emancipadoras que revolucionam a Europa, e designadamente a paisagem cultural de França, sob o influxo do século das luzes e da revolução de 1789, mas igualmente ciente da importância da História, da tradição e do tempo longo, dos corsi ricorsi de Vico, que para o autor de O Labirinto da Saudade tinham uma importância fundamental. A “incompletude trágica”, de que fala Viriato Soromenho Marques (Expresso, cit.) que o pensador sentiu compreende-se na referência anteriana: “Antero quis beber o vinho novo da Revolução na antiga taça de uma Fé que todo o seu século – e ele mesmo - ajudara a quebrar. Ou inversamente, acreditou que a antiga aspiração encontrava o seu cumprimento nos combates novos sob a bandeira da justiça social” (Antero ou o Socialismo como Utopia, 1983). E assim podemos encontrar o nosso incansável pensador, embrenhado no enigma camoniano da procura do “português que tem tudo em nada”. O leitor insaciável continua a caminhar à nossa frente.   

   

 Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença