AMIZADE
Tenho para mim que a desilusão profunda em relação a uma amizade, só depende das expectativas elevadas - e mesmo carinhosas e protectoras -, que nela possamos ter empenhado, muitas vezes, com o desejo e a aspiração de, com elas, ajudarmos alguém a abrir caminhos fechados, mas que na altura certa, abrimos ao nosso amparo, à nossa partilha do que brilha na nossa vida e oferecemos como luz.
A amizade também pode ter este ângulo por entre outros. Assim, não se concebe sequer que o receptador mais beneficiado de uma amizade deste suco e cujos anos solidificaram, venha um dia a perder a visão da experiência extraordinária que lhe foi proporcionada, e, nivele, ao nível do chão tudo o que afinal tinha aceitado como fazendo parte de um inconfundível e irrepetível estar.
Tenho para mim, por outro lado, que o amigo não nos engana, fala-nos com verdade, e nós acompanhamo-lo com imparcialidade terna e tão lúcida quanto formos capazes.
A amizade é uma filigrana de encontros, ainda que possam esses encontros deparar-se com um “benefício” maior para uma das partes. Enfim, faz parte da vida que assim seja, sem que se avalie ou pese a eventual desproporção quando exista. Enriquecer e crescer em conjunto, tanto afectivamente como intelectualmente, deve ser também um propósito da amizade.
Contudo, às vezes, o milagre dos encontros da amizade turva-se. Seja para nos esclarecer ou não, este acontecimento magoa profundamente.
A amizade pressupõe a estabilidade de um porto seguro e, se nalgum momento ela carece de algum esclarecimento, nunca o mesmo chega pela via da maledicência temperada pelo exagero das inverdades.
Superar uma ou outra crise dentro de uma amizade verdadeira, faz parte do melhoramento que constitui a travessia difícil deste afecto. Mas nunca, nunca se suja o bom nome e o bom sentir nas costas do amigo. A amizade não é algo de circunstância, não é um «como estás, há muito que não te via». Ao contrário, o amigo, quando nos encontra, ilumina-se, talvez porque olha o nosso passado e o dele, o nosso futuro e o dele, com a comum óptica de se identificar com o cerne das coisas partilhadas.
Todavia, existe também uma amizade que chamaria de granulada. Esta carece de minimizar o amigo se este lhe é superior. Esquece esta tipologia de amizade que deveria estar prevista e punida pelo código da moral de cada um, e que na amizade não há lugar para o poder miserável da mais mísera maldade. Na amizade, os amigos são magnânimos um para o outro e instintivamente expulsam tudo o que possa perturbar esta grandeza.
Diria mesmo que o encontro com a amizade, interrompe a trama aviltante da vida quotidiana e por essa razão não lhe assiste a maledicência que agride o ausente como se deste modo se evidenciasse a virtude que afinal se não tem.
Um amigo nunca dirá mal de nós. Se alguém o fizer, ou nos defende, ou retira-se para sempre de perto da pessoa que ousou. De resto, diga-se que quem tenta destruir uma obra como a da amizade, sabe aviltar o linho em estopa reles.
A amizade também não exerce represálias, nem contém o sentimento da vingança. Mas, infelizmente há quem confunda a amizade com qualquer outra coisa. Desconheço qual é essa outra coisa, sei apenas que a amizade é um ideal real que nasceu para o merecermos e conquistarmos, para que o mundo se encha de amigos e estes, ao verem-se, sorriam.
Partilhar na amizade a nossa vida privada, é tão só a expressão de uma viagem a dois, mas uma viagem que permanece dentro da palma da mão, secreta, pois que constitui a privacidade do amigo que abraçámos.
Com o passar dos tempos, nós mudamos, os nossos problemas mudam, mas se encontramos o Ser que encarna a amizade de sempre, temos a impressão de que o encontro último foi ontem, que não houve intervalo, nem falta de mão, nem de abraço e o olhar estende-se e não há nada de semelhante na nossa experiência quotidiana.
Assim a amizade é também motivo da lágrima encantada se expor. Por ela se fará o trânsito de um afecto tão sólido quanto dependente de uma linguagem do sentir, única, e necessária como um copo de água à cabeceira da vida.
Teresa Bracinha Vieira
(Publicado em 2005)