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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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ANSELMO BORGES: "É POSSÍVEL QUE OS CATÓLICOS SE SINTAM ABANDONADOS"

 

Em tempos de pandemia, o teólogo Anselmo Borges questiona o que está atrás das portas fechadas das igrejas, o que se passa com a humanidade que deixou as praças vazias em todo o mundo – sem esquecer a de São Pedro.

 

O padre e teólogo Anselmo Borges refere nesta longa entrevista que tem tido muito tempo nas últimas semanas para pensar, ler, andar... Ao mesmo tempo, tem sido confrontado com uma Igreja Católica bastante diferente da que tem existido há dois mil anos, seja por ver o Papa Francisco sozinho na Praça de São Pedro a falar ao mundo e a celebrar a Páscoa, bem como por se confrontar com a interrupção de todas as celebrações religiosas desde há semanas e de uma forma tão radical que jamais achara ser possível.

 

Esta entrevista mostra um pensador diferente de anteriores conversas, dir-se-ia um crente que foi mais do que nunca obrigado a recorrer à sua reflexão de décadas, aos ensinamentos da Bíblia e aos de muitos teólogos e cientistas sociais – a favor e contra a instituição Igreja e estudiosos da fé – com quem se deu ou estudou, de modo a ser capaz de repor a ordem do seu pensamento perante a catástrofe que atingiu toda a humanidade sem um aviso prévio.

 

Sendo uma voz critica de muitos comportamentos ostentatórios da Igreja, estudioso de novas formas do existir contemporâneas, como as questões que a neurociência vai desbravando entre outras novas tecnologias, adepto do diálogo inter-religioso e insaciável no confronto de ideias, Anselmo Borges realiza nesta entrevista um mergulho teológico através da história de muitos homens e mulheres que o antecederam. Por isso não se estranha quando afirma perante a crise temporária provocada pela covid-19 junto da instituição de que faz parte: “Na Igreja primitiva, não havia sacerdotes nem toda a maquinaria de que a Igreja, entretanto, e não pelas melhores razões, se foi apetrechando.”

 

Aproveita para equacionar além do tempo mais imediato que se segue à maior preocupação de todos os habitantes da Terra, o fim da pandemia, no que respeita a pilares que o Papa Francisco tem estado a abanar: “Pensando no futuro, julgo que se imporá uma revisão na formação dos futuros padres. Ela deve operar-se em ambientes naturais, mais em contacto com a realidade – os seminários serão para encontros espaçados, para uma formação mais específica comunitária. E haverá dois tipos de padre: o homem ou a mulher, casados ou não, escolhidos pela comunidade, que têm a sua profissão e que por algum tempo assumem a missão de liderar a comunidade; haverá também os que, celibatários por opção, se entregam a tempo inteiro à coordenação de comunidades e à sua formação mais profunda e intensa...” Para que não fiquem dúvidas, recupera as palavras do antecessor de Francisco:”O próprio Bento XVI, quando era ainda apenas o professor Joseph Ratzinger, propôs algo de semelhante.”

 

Há uma semana aconteceu o primeiro Domingo de Páscoa na história dos católicos em que as suas igrejas estiveram e continuam encerradas por todo o mundo. Esperava ser testemunha de uma religião de portas fechadas?
Sinceramente, não. Aliás, nunca imaginei que havíamos de passar por um flagelo global como este que estamos a viver.

Mas uma crise é ou deve ser sempre uma oportunidade. Neste caso, penso que foi uma oportunidade para reflectir. De facto, havia o perigo de reduzir a Páscoa a procissões, correrias, talvez demasiada exterioridade e até folclore. Foi a oportunidade de se ir ao essencial e perguntar pelo sentido real e verdadeiro da Páscoa. Perguntar, por exemplo: em que é que eu acredito, em que é que realmente acreditamos, e sobretudo: em quem acreditamos? A Páscoa celebra a paixão e morte de Jesus e a sua ressurreição, e este é o centro da fé cristã. Neste mistério, revela-se que Deus, o Mistério último, indizível, se revelou como Amor incondicional em Jesus. Evidentemente, a ressurreição não é a reanimação do cadáver; nela, o que se afirma é que Jesus, crucificado, está vivo para sempre, ele é o Vivente em Deus, que é a Vida e a fonte da vida.

 

Foi a oportunidade para o reencontro com uma fé mais límpida?
Nada nem ninguém consegue dizer o mistério da ressurreição como os Evangelhos. Os discípulos, a começar pelas discípulas (Maria Madalena foi a primeira), reflectindo sobre o que Jesus fez e foi, no modo como ele se relacionava com Deus e com todos, a começar pelos mais abandonados, pobres, pecadores, prostitutas, no modo como morreu, fizeram a experiência avassaladora de fé de que ele é o Vivente em Deus e, quando quiseram dizer essa experiência descrevem o que chamaram “aparições”, “visões”, mas de tal modo que Maria Madalena, por exemplo, não o reconheceu, só quando ele se lhe dirigiu pelo nome: “Maria”, mas ela não pôde tocá-lo; Jesus caminhou com os discípulos de Emaús, mas eles só o reconheceram “ao partir do pão”; entrava, com as portas fechadas, saudava os discípulos: “a paz esteja convosco”, e desaparecia; disse a Tomé que metesse a mão no lugar dos cravos, mas não se diz que ele tenha metido, inclinou-se: “Meu Senhor e meu Deus”… Acreditaram e foram proclamar a grande notícia e morreram por ela. Na fé, como em tudo o que é essencial, o ver é o ver espiritual, íntimo e único, mas partilhável. Sem essa experiência interior, fica-se na mera exterioridade e em fórmulas dogmáticas congeladas que nada dizem.

É isso: é ele, pessoalmente, o Jesus real, mas transformado, já não no tempo e no espaço, mas na dimensão da eternidade. Foi Ernst Bloch, o ateu religioso, que me disse um dia: “Eu sou a Ressurreição e a Vida”: foi com esta proclamação que o cristianismo venceu.”
Depois, quem acredita parte para a vida, procurando fazer o que Jesus fez e mandou: combater por um mundo justo, feliz, para todos, na paz. Com mais esperança, força, confiança. E na convicção de fé, com razões, de que o ser humano na morte não cai no nada, mas entra na Realidade mais real e verdadeira, na plenitude da vida em Deus. Como é? Ninguém sabe.

 

Estarmos perante uma religião que deixou de baptizar crianças, dar catequese, casar e enterrar católicos, não a deixa questionável aos olhos dos fiéis? 
Esta situação pode provocar um abalo nos fiéis, e eu espero que seja positivo. O que se passa é que o clero se tinha apropriado da Igreja, dos sacramentos, acabando por criar, mesmo que talvez isso não tenha estado na sua intenção, uma Igreja piramidal, vertical, clerical, com privilégios, o carreirismo e o clericalismo e a corte, que é a Cúria romana e outras, tudo o que, segundo o Papa Francisco, constitui “a peste da Igreja”.

No quadro dessa mentalidade, nesse modo de Igreja, é bem possível que os católicos se sintam agora um pouco abandonados, desamparados, pois não podem ter acesso imediato aos “donos” da sua religião.
É urgente repensar o que é verdadeiramente a Igreja, que é, antes de tudo, o conjunto de todos os baptizados. Na Igreja primitiva, a Igreja era primeiro “a Igreja doméstica”, que se reunia nas casas de algum cristão ou cristã com uma casa mais ampla e quem presidia era o dono ou a dona da casa e celebravam a memória de Jesus, fazendo o que ele mandou: dar a bênção e partilhar o pão e o vinho, lembrando-nos dele, em acção de graças, como diz a palavra Eucaristia. E foi a primeira tremenda revolução na história do mundo no que à religião se refere: se algum senhor se tinha convertido a Jesus, ali sentava-se à mesma mesa que um escravo. Nestes dias de Páscoa, leu-se a história dos discípulos de Emaús, que reconheceram Jesus ressuscitado “ao partir do pão”. Para escândalo de muitos, não se fez a consagração.
Ainda alguém me há-de mostrar no Novo Testamento onde é que está que Jesus ordenou alguém sacerdote. Todos os baptizados são sacerdotes e o ministro ordenado (o chamado indevidamente sacerdote) é, como diz a palavra, apenas o que preside, num serviço ministerial, ao sacerdócio real dos cristãos.

 

Esta situação de prática de religião suspensa fisicamente irá provocar algum estremecimento nos católicos que viam nas missas e noutras cerimónias religiosas uma certeza ao longo de toda a sua vida?
Suspensa porquê? Já disse que na Igreja primitiva não era assim. Na Igreja primitiva, não havia sacerdotes nem toda a maquinaria de que a Igreja, entretanto, e não pelas melhores razões, se foi apetrechando. Por isso, é necessário reconhecer, com o teólogo Bernardo Pérez Andreo, que o coronavírus, com o confinamento, acabou por colocar em xeque esse catolicismo tradicionalista, que deixa os padres e bispos com a possibilidade de celebrar e comungar, discriminando os outros fiéis, que ficarão à míngua: “O catolicismo não pode ser a dependência do clero”.

Eu não sou nem nunca fui anarquista. E, por isso, considero que deve haver uma “ordem” (daí, o padre ordenado ou o bispo…) e um mínimo de organização.
Mas quem pode impedir ou declarar inválidas as celebrações da Eucaristia realizadas nas famílias? Estas não são porventura Igrejas domésticas? Ou, como já escrevi, impedir que se concelebre “coronoviricamente” em casa, assim: em vez de apenas “assistir” à Missa pela televisão ou outras novas tecnologias, colocar numa mesa com uma vela acesa e o livro dos Evangelhos pão e vinho, símbolos da vida, e participar na celebração, perdoando uns aos outros os pecados como Jesus mandou, ouvir a Palavra de Deus e comungar realmente e não apenas espiritualmente, como é aconselhado? Aliás, a comunhão, para ser real, não tem de ser sempre espiritual também? E o que são os sacramentos senão sinais visíveis de uma Presença (com maiúscula) invisível, mas real e actuante na graça que vivifica?

 

Está a falar por experiência própria?
Permita que lhe conte um entre muitos encontros que tive com o maior exegeta católico do século XX, grande cristão, o meu querido amigo, professor de Tubinga, Herbert Haag. Foi numa Sexta-Feira Santa em sua casa, em Lucerna. Conversámos longamente sobre Jesus, a sua história, os seus desígnios, a sua morte e ressurreição, a sua Igreja. Até foi nesse encontro que ele me pediu para ir buscar o Evangelho segundo São João em grego e ler aquele passo: “Àqueles a quem perdoardes os pecados ser-lhes-ão perdoados”, e reparei então que Jesus não disse isso aos Apóstolos mas aos discípulos (oi mathetai). Conversámos enquanto partilhávamos uma refeição ao anoitecer, uma refeição com pão, queijo e bom vinho. Já noite dentro, à saída para o hotel, perguntei-lhe em afirmação: “Professor, foi uma Eucaristia”. E ele, serenamente: “Claro que foi.”

 

E nos membros do clero esta interrupção da sua missão levantará questionamentos diferentes daqueles que assombravam a Igreja nos últimos tempos, como mulheres a serem ordenadas, casamento dos padres?
No contexto do que acabo de dizer-lhe, é essencial que o clero medite na sua missão e no seu lugar na Igreja e no mundo. Impõe-se uma conversão radical, em ordem a uma Igreja já não clerical, piramidal, mas participativa, em círculo, comunional, pondo cada um, cada uma, os seus carismas ao serviço de todos. Homens ou mulheres, casados ou não, porque Jesus não impôs o celibato.

Mas, repito, não sou anarquista e, quando passar este pesadelo, os católicos, porque o cristianismo é simultaneamente uma fé pessoal a partir de uma experiência íntima, e comunitária, reunir-se-ão outra vez festivamente em assembleia comunitária, para, todos juntos, celebrarem a Eucaristia.
Mas, pensando no futuro, julgo que se imporá uma revisão na formação dos futuros padres. Ela deve operar-se em ambientes naturais, mais em contacto com a realidade (os seminários serão para encontros espaçados, para uma formação mais específica comunitária). E haverá dois tipos de padre: o homem ou a mulher, casados ou não, escolhidos pela comunidade, que têm a sua profissão e que por algum tempo assumem a missão de liderar a comunidade; haverá também os que, celibatários por opção, se entregam a tempo inteiro à coordenação de comunidades e à sua formação mais profunda e intensa... O próprio Bento XVI, quando era ainda apenas o professor Joseph Ratzinger, propôs algo de semelhante.

 

Se todas as epidemias da História da humanidade até há bem pouco tempo eram 'carimbadas' como um castigo de Deus, esta não o será. É uma primeira pedra a cair num edifício mental religioso com dois mil anos e que produzirá leituras diferentes das páginas da Bíblia que guiaram até há bem pouco os católicos? 
Desgraçadamente, ainda há quem, incluindo cardeais, ouse apelar para o castigo de Deus. Isso é uma blasfémia. Porque é incompatível com Deus que criou por amor.

Como já disse, impõe-se saber ler a Bíblia e renovar e recriar a linguagem, não só teológica, mas também litúrgica. Por exemplo e só exemplos: como se pode continuar a dizer que as crianças nascem com o pecado original? Só se se entender por isso o que faz sentido: que nascem inocentes, mas para um mundo onde já há pecado e, por isso, podem ser afectadas por ele, como um não fumador, ao entrar numa sala de fumadores, pode ser contaminado pelo fumo. E o que é que quer dizer para um contemporâneo, ao recitar o Credo: “Gerado, não criado, consubstancial ao Pai”?; que quer dizer: “Creio na ressurreição da carne?”; que dizer a uma pessoa que tem medo de comungar na mão, porque podem cair fragmentos da hóstia? E as homilias inúteis, vazias ou contra  a razão? Só exemplos, que obrigam a reflectir e a não esquecer que de Deus, no Novo Testamento, se diz que ele é “agapê” (amor incondicional) e também “Logos”, que quer dizer razão, inteligência. Portanto, não basta o amor, a bondade, impõe-se atender à razão, à inteligência e procurar viver interpenetrando bondade e razão, amor e inteligência.
Por vezes, aparecem na Internet vídeos a ridicularizar o que parece a fé cristã. A mim não me ofendem, pois apenas ridicularizam, e é urgente aprender com isso, imagens ridículas de Deus e dos dogmas que a Igreja foi e vai tantas vezes transmitindo.

 

A forma como o Papa Francisco tem conduzido as suas aparições nestas últimas semanas torna-o mais consensual dentro da própria igreja Católica?
Aqui, permita que, na situação desta calamidade da Covid-19, que lembra, por exemplo, as pestes, recorde o Decameron de Bocaccio (1313-1375) no contexto da Peste Negra. Está lá a história daquele judeu bem intencionado que, instado por um amigo a converter-se, decide ir a Roma para ver e analisar o que se passava no centro da cristandade. O amigo tenta dissuadi-lo, pois Roma não seria o lugar ideal para encontrar o cristianismo, mas ele parte, deparando realmente com a podridão moral: luxúria, todos eram gulosos e beberrões, simonia e tantos outros vícios e pecados… Regressando a Paris, encontra-se com o amigo, que esperava tudo menos a sua conversão. Mas não. Ele voltara convertido, e a razão era que, se a Igreja, apesar do que vira, continuava viva, só podia ser porque como sua base e fundamento se encontra o Evangelho e o Espírito Santo. Nesta linha, também se conta que, quando Gandhi esteve no Vaticano, olhou para aquilo tudo e terá dito como o judeu do Decameron: se nem estes acabaram com o cristianismo, o Evangelho de Jesus é realmente verdadeiro.

 

O que nos leva de novo a Francisco...
Hoje, no Vaticano, mora (não será o único) um Papa cristão, Francisco. Que dá ânimo, consolação, esperança, confiança, que põe o seu esmoleiro apostólico, o cardeal Krajewski, protegido mas sem qualquer adorno cardinalício, nas ruas com os sem abrigo e indigentes, que quer abraçar a todos, que devem saber que “no isolamento em que sofremos falta de afecto e de encontro, fazendo a experiência da falta de muitas coisas”, ninguém está só. Na Páscoa, fez uma homilia programática para uma conversão global, pedindo o alívio ou até o perdão da dívida aos países mais pobres, que os refugiados não sejam abandonados à sua tragédia, apelou à solidariedade na União Europeia e à superação dos egoísmos, porque “do desafio do momento actual depende não só o seu futuro, mas o do mundo inteiro”. E esta semana tomou a iniciativa de criar uma Comissão de peritos para estudar como enfrentar a terrível crise económica, social e política a caminho. Com cinco grupos de trabalho que se ocuparão de reflectir sobre os desafios socioeconómicos, culturais, políticos, espirituais, do futuro já presente. Qual o contributo da Igreja nesta nova situação dramática e decisiva na qual o que está em jogo é o próprio futuro da Humanidade?

 

Que significado tem, e terá, para os fiéis um homem só na Praça de São Pedro a falar para todos eles e para o resto do mundo?  
É uma imagem pregnante que ficará na memória de todos quantos, naquela tarde um pouco chuvosa e escura, presenciaram Francisco a atravessar sozinho em passos lentos aquela Praça de São Pedro deserta e a subir as escadas que levavam a uma plataforma. Dali, convidou à conversão e à esperança, insistiu repetidamente na necessidade da fraternidade e da solidariedade, dirigiu-se longamente às “pessoas comuns, muitas vezes esquecidas, que não ocupam as primeiras páginas dos noticiários televisivos, dos jornais e das revistas nem aparecem nos grandes desfiles do último show, mas que, sem qualquer dúvida, estão a escrever hoje os acontecimentos decisivos da nossa história”, e citou “médicos, enfermeiros e enfermeiras, empregados de supermercados, agentes de entretenimento, artistas, fornecedores de cuidados ao domicílio, transportadores, forças da ordem, voluntários, padres, religiosas e tantos, tantos outros que compreenderam que ninguém se salva sozinho”. Num abraço que quer abraçar e consolar a todos, abençoou o mundo, pedindo que se ponha de lado “a nossa sede de omnipotência e de posse e domínio”.

Na sua simplicidade comovente, de uma intensidade avassaladora, foi mais um gesto que corroborou não só nos fiéis mas também em não crentes a imagem de um líder, um profeta, político-moral global confiável.

 

A Igreja Católica fechou rapidamente as portas dos templos, no entanto não demorou demasiados dias a aparecer ao lado dos que creem nela? 
Mais uma vez, penso que é urgente operar uma revolução. Cá está: quando se fala em Igreja, pensa-se em primeiro lugar e imediatamente na organização e na hierarquia: Papa, bispos, cardeais, padres… Ora, o Concílio Vaticano II veio corrigir. A Igreja é em primeiro lugar o Povo de Deus, o conjunto dos baptizados e, nesse Povo, há uma organização, inevitavelmente, que deve seguir o que Jesus queria, e o que ele queria até se adequa mais aos tempos, que caminham no sentido da democracia. Na Igreja, tem de haver serviços, ministérios, sem honrarias nem privilégios nem mitras nem barretes cardinalícios nem solidéus que, nas celebrações, levam àquele ritual, tão desinteressante, do tira e põe solidéu. A Igreja deve ser mais do que uma democracia, pois Jesus disse: “Eu vim não para ser servido, mas para servir” e: vós não deveis procurar ser os primeiros pelo poder, mas pelo serviço: “vós sois todos irmãos”.

O equívoco tem de ser urgentemente corrigido. Os católicos não crêem na Igreja; o que é preciso é, passando à verdade, confessar: em Igreja, todos juntos, crêem em Deus Pai-Mãe, criador e salvador, crêem em Jesus, o enviado de Deus, que revelou por palavras e obras Deus, o Mistério invisível e indizível, como Amor, e crêem assim, na luz do Espírito Santo. O acento não pode estar de maneira nenhuma na organização e na hierarquia.

 

E já vê sinais de uma futura mudança?
Viaja na Internet uma “graça” que diz bem o que eu quero exprimir. Mais ou menos assim: o Diabo: “Com a Covid-19 fechei-te as igrejas”; Deus: “Pelo contrário, abri uma em cada casa”. É evidente que eu não quero de maneira nenhuma que as igrejas fiquem definitivamente fechadas, mas para que servem as igrejas-edifício sem a Igreja da fé vivida por cada um dos cristãos e sem as “Igrejas domésticas” em cada casa e família?

Dito o que aí fica, quero prevenis e sublinhar que,  tanto mais quanto ensinei muitos e muitos anos Antropologia Filosófica, não ignoro que o ser humano é um animal simbólico e simbolizante e precisa de símbolos e de rituais. Mas que eles sejam adequados e vivos e belos.

 

A palavra cisma deixou de se ouvir. O inédito de dois papas vivos em simultâneo, com opiniões nem sempre convergentes, vai ser uma polémica esquecida no pós-pandemia ou tudo voltará a ser com dantes?
Em primeiro lugar, quanto aos dois Papas, nada justifica teologicamente que Bento XVI se tenha intitulado Papa emérito. Não há Papas eméritos. O Papa é o bispo de Roma,  ao qual está vinculado o papado, como serviço de unidade da Igreja, na caridade. Só há um Papa, como foi dito até pelo ultraconservador cardeal Gerhard Müller, durante a recente polémica, por causa do cardeal Robert Sarah. Quando deixa de ser Papa, torna-se bispo emérito de Roma. E devia, para evitar confusões e aproveitamentos, deixar o Vaticano e as vestes pontifícias. Como fará, estou convencido disso, o Papa Francisco, se e quando resignar.

Sim, a palavra cisma deixou de se ouvir, pois, no meio desta calamidade que a todos atinge, quem quer ouvir falar nisso? É preciso ir ao essencial e acudir às pessoas em necessidade, também em necessidade espiritual.

 

É uma discussão em quarentena?
Mas não é impossível que, se não houver conversão ao núcleo da fé, esse discurso do cisma volte. Mas digo-lhe: uma Igreja sem conversão ao que é essencial e determinante da fé cristã — o determinante é Jesus Cristo, na vida e na morte —, e que não se recrie segundo esse determinante, na organização, na formulação da doutrina, na liturgia, será uma Igreja cada vez mais museu, que se irá tornando irrelevante, insignificante, no meio da sociedade e da História.

A Igreja assenta em três pilares fundamentais. Em primeiro lugar, a fé, essa entrega confiada a Deus, o Mistério último, Amor incondicional revelado em Jesus Cristo. Essa fé não pode ser irracional, não pode, muito menos, agredir a razão, tem de ser pensada e reflectida e ser capaz de dar razões dela e da esperança. A Igreja tem de ser a multinacional do sentido, do Sentido último. Depois, a fé vive-se na oração, certamente, mas não menos no amor, que se traduz no combate lúcido e corajoso pela justiça, pela dignidade divina de todos, pelos direitos humanos. Aqui, é preciso lembrar que o cristianismo operou várias revoluções, uma delas, essencial: ele transcende a confessionalidade; de facto, como diz o capítulo 25 do Evangelho segundo São Mateus, no Juízo Final, não se perguntará às pessoas, em ordem à salvação, por doutrinas e dogmas, por actos religiosos confessionais (isso não significa, de modo nenhum, menosprezo por eles), mas por aquilo que se fez na ordem aparentemente tão pouco espiritual, religiosa e confessional: “Tive fome e deste-me de comer, tive sede e deste-me de beber, estava nu e vestiste-me, estava no hospital, na cadeia, e foste ver-me.” E quem assim procedeu não sabia que o outro necessitado é Jesus, o que significa que alguém que até se confessa ateu, mas pratica a justiça e faz o bem, é realmente cristão, e isto é estrondoso. O terceiro pilar são liturgias belas, que celebram festiva e comunitariamente, com alegria, a vida vivida em Deus. Porque Deus não está fora; quem acredita sabe que é em Deus que nos encontramos sempre.  

 

Nos seus livros e ensaios existem preocupações filosóficas, científicas e metafísicas que se debatiam com o mundo como o conhecíamos. Até que ponto esta pandemia o vai obrigar a rever certos pressupostos em que acreditava?
Desculpe talvez a vaidade, mas não me sinto na necessidade de revisões. De facto, nestas circunstâncias que atiram para um sofrimento incrível, a impotência, a morte, talvez o abalo maior possa vir daquele famoso dilema, que já vem de Epicuro: Deus deve ser omnipotente e infinitamente bom. Então porque é que nos abandona e nada faz? Eu já tinha reflectido muitas vezes nisso, mostrando que é falso o pressuposto de que é possível um mundo finito ser infinito, em processo evolutivo e sem choques; não se pode querer a autonomia das realidades terrestres e cósmicas e ao mesmo tempo um Deus intervencionista; nem é compaginável querer a liberdade e ao mesmo tempo um Deus manipulador.

Deus é omnipotente, não no sentido de dominar, mas enquanto Força infinita de criar. Ele é o criador, não se afastou do mundo, está infinitamente presente ao mundo, impulsionando ao bem e como anti-mal, mas respeitando a sua autonomia e a nossa liberdade. E a História está em processo e lê-se do fim para o princípio e o crente espera, com razões, que a última palavra, que ainda não foi dita, será dita por Deus e será uma palavra de misericórdia e salvação para a vida eterna. Evidentemente, o crente não pode dizer que sabe que Deus existe e que há vida para lá da morte. E entende o não crente, concretamente por causa do mal no mundo. Mas o não crente também não pode dizer que sabe que não há Deus e que com a morte acaba tudo. Ele não sabe, crê, e eu entendo as suas razões. Mas o crente também crê, com razões. Pessoalmente, penso que é mais razoável acreditar em Deus e na vida eterna. No próprio acto em que o crente ousa entregar-se, em confiança radical racional, a Deus, o mundo, que se apresenta tão ambíguo, ambivalente  e tantas vezes sem sentido, ilumina-se e torna-se mais razoável, pleno de sentido.

 

Já releu livros de colegas teólogos em que certas questões de que divergia parecem agora ter algum significado?
Não. Mas, salvaguardando sempre o pluralismo na Igreja, pois, como disse São Paulo, “onde está o Espírito de Cristo aí está a liberdade”, e o princípio de que as pessoas estão antes e acima do Código de Direito Canónico, estou de acordo em que, no meio de algum descalabro moral das nossas sociedades, se impõe evitar o perigo de que agora, dentro da infinita misericórdia divina, vale tudo. Como é igualmente necessário prevenir contra a ameaça de alguma anarquia institucional na Igreja.

E é preciso manter sempre o equilíbrio racional, também na análise política, incluindo a economia política e a geoestratégia. É evidente que é necessário denunciar o capitalismo desregrado, que não serve de modo nenhum e que mata, mas também não se pode, depois, de modo nenhum, ser ingénuo quanto às soluções.
Lá está sempre a aliança da bondade e da razão.

 

Acredita que a humanidade ficará diferente após esta crise mundial ou retiraremos poucos ensinamentos? 
Esta crise vem cheia de ensinamentos. Vamos aproveitá-los? Temo que estejamos agora unidos mais pelo medo comum face ao incontrolável (“o indisponível”, de que fala o filósofo Hartmut Rosa) do que pelas lições que esta crise nos traz e que tanto precisávamos de aprender.

Alguns exemplos. Andávamos distraídos do essencial, apressados, pensando que estava tudo sob o nosso controlo, que éramos omnipotentes. De repente, ficámos desorientados e perdidos na nossa fragilidade, expostos ao medo, à morte, caíram sobre nós perguntas essenciais, como: o que é que verdadeiramente vale? qual o sentido da vida? quem somos, o que somos? Os nossos planos caíram, ficámos com imenso tempo, um tempo estranho, parado, vazio, num silêncio de breu. Egoístas, cultores de um individualismo soberano e arrogante, demo-nos de repente conta de que dependemos uns dos outros, que nos podemos contagiar uns aos outros, mas também só uns com os outros nos podemos salvar. E, presos num consumismo voraz e alarve, reparamos agora que precisamos de muito menos para viver bem, é possível viver com menos. E que precisamos de pensar e de meditar. E não somos omnipotentes, não somos Deus, não somos deuses, como lembrava há dias Paulo Rangel, citando o cardeal alemão Reinhard Marx.

 

Pouco mudará, então?
Ficaremos com estes ensinamentos vitais ou, terminada a crise, esqueceremos tudo e voltaremos à vertigem da corrida e da competição, fechando-nos outra vez no individualismo, no consumismo, esquecendo todas as vítimas: por exemplo, todos os dias morrem de fome 24 mil pessoas no mundo e há 215 milhões de crianças no mundo que são vítimas de escravatura, continuarão as guerras, a violência, a exploração, o primado do deus Dinheiro? Tanto mais quanto já está presente e aumentará uma crise terrível económica, social, política. E precisávamos de unir-nos na solidariedade global, mas será que os nacionalismos, populismos, imperialismos invadirão o mundo? Tínhamos tomado consciência de que, por causa do confinamento, o ar era mais puro, havia menos poluição, mas estaremos dispostos a uma real conversão também neste domínio vital da salvaguarda da mãe Terra e da casa comum?

 

Que atitudes sugere?
Precisaríamos de parar, de meditar, de rezar, de ter tempo para nós, para a família, para a beleza, para a contemplação, para a música, para pura e simplesmente fruir do milagre de viver e estar vivo… Mas vamos esquecer e voltar à vertigem da aceleração alienada? Para onde queremos ir, afinal, até que venha outro vírus?

O ser humano é terrivelmente complexo e carente. É por isso que não se aquieta no essencial do ser, e deslumbra-se com o ter. Chamo permanentemente a atenção para a escola, essa palavra mágica que vem do grego scholê, que significa ócio, não o ócio da preguiça, mas o tempo livre para homens e mulheres livres pensarem e governarem a polis. Mas há sempre o perigo do negócio (de nec/otium, negação do ócio), de tudo se tornar negócio, incluindo a política. Esse perigo está aí concretizado e operante. Ora, para os negócios e a técnica, não se pensa – o filósofo Martin Heidegger preveniu: a técnica não pensa —, não se pensa, apenas se calcula, e fica tudo reduzido a cálculos.

 

Perigos não faltarão à humanidade nos próximos tempos?
Sim, há uma série de problemas que são globais, como o armamento atómico, químico e biológico; as questões da ecologia; os mercados; os problemas levantados pelas NBIC (acrónimo de nanotecnologias, biotecnologias, inteligência artificial, ciências cognitivas, neurociências), como o transhumanismo, o pós-humanismo, o eugenismo; as migrações… Problemas globais, que precisam de soluções ético-jurídico-políticas globais, no quadro de uma Global Governance (não digo um governo mundial), uma governança global. Ora, de facto, a política é nacional ou, quando muito, regional.  E a nova geoestratégia? E a China?

Aqui, a Igreja Católica, enquanto única instituição verdadeiramente global, poderá, como já ficou dito, em união com as outras Igrejas cristãs e as religiões mundiais, ter um papel decisivo numa Declaração ao mundo sobre as condições de possibilidade de futuro para a Humanidade. Apesar de tudo, pelo menos 80% da Humanidade ainda se confessa religiosa.

 

Em cem anos nunca Fátima fechou as portas aos peregrinos que vêm de todo o mundo para o 13 de Maio como irá verificar-se este ano. Será, finalmente, a vitória da legião anti-Fátima ou um fait-divers no meio de todo o pandemónio global? 
De maneira nenhuma. Não é nem será a vitória dessa legião. Pelo contrário. Para já, impunha-se evidentemente, até por uma questão de bom senso, fechar Fátima e anular a celebração pública do 13 de Maio. Mas, dentro da lógica de Fátima e do que leva milhões de peregrinos a Fátima — Maria é a mãe, a que ouve e entende —, logo que seja possível (quando, não se sabe), as pessoas irão lá em massa, para rezar, para agradecer, para pedir. Exactamente para aquilo que já fazem e independentemente da Igreja oficial. Fátima salta, de algum modo, para fora do controlo do clero. Nunca esqueço que, quando há anos se anunciou, num 13 de Maio, que ia ser “revelado” o terceiro segredo de Fátima, eu, diante da televisão, pensei que toda aquela gente iria ficar especada a ouvir. Mas não. Os peregrinos continuaram na sua devoção e na sua fala íntima com a Mãe. A definição precisa de Fátima foi dada há muito tempo por Frei Bento Domingues: “Fátima é o cais de todas as lágrimas dos portugueses”.

 

Sabe como está a situação financeira dos padres nas paróquias que ficaram sem receber os peditórios?
Não sei, porque não sou pároco. Pareceu-me, por aquilo que ouvi a um colega que é pároco, que vai haver algumas dificuldades, exactamente na medida em que não há os peditórios nem se deu a chamada “côngrua” no compasso da Páscoa. Penso serem essas as duas fontes de receita para o salário dos párocos e para pagar as despesas das igrejas.

De qualquer modo, as suas dificuldades não se assemelharão às de muitas famílias que suponho viverem já em autêntica miséria, inclusivamente queixando-se da falta de possibilidade de alimentar os filhos.

 

Como estão a conviver as outras religiões com estes novos tempos?
Tanto quanto me é dado saber, concretamente os protestantes, os judeus e os muçulmanos têm utilizado também as novas tecnologias para se unir e rezar.

E parece-me que as dificuldades terríveis por que todos passamos têm unido a todos inter-religiosamente. Afinal, indo mais fundo, é mais o que nos une do que o que nos separa. O que nos une é o Mistério, o Sagrado, referente comum de todas as religiões que saibam o que isso quer dizer, e o mandamento de amar o próximo como a nós mesmos, concretamente e sobretudo quando está mais fragilizado e em maior dificuldade. O que nos une é, antes de tudo, a humanidade comum de todos numa casa comum, sabendo que nos salvamos juntos ou nos perdemos todos.
E, dado o prestígio do Papa Francisco, penso que as várias religiões deveriam ser associadas à Declaração comum à Humanidade, atrás referida.

 

Como está a decorrer a sua quarentena? 
Normal. Eu sou um privilegiado. Por vários motivos. Depois de suspender uma série de aulas, conferências e palestras em agenda, continuo a fazer o meu trabalho, de que gosto e que não me falta: ler, estudar, escrever, dar entrevistas. Depois, o Seminário onde vivo tem uma quinta, podendo eu dar passeios, arejar, pensar peripateticamente (a andar…). Três colegas concelebramos todos os dias, mantendo as devidas distâncias sociais, segundo as regras. Há um colega, padre Zacarias Pinho, que é um autêntico provedor e que prevê e provê, não faltando nada do que é essencial. E tenho muitos amigos e amigas que me telefonam ou escrevem (dá-me particular alegria ouvir antigos alunos que, espalhados por muitos lados, até nas ilhas, até em Nova Iorque, que me telefonam a perguntar e a animar) e se oferecem para, se algo for necessário: “Saiba: eu estou aqui, nós estamos aqui”). Também procuro dar ânimo, esperança, confiança, e ouço confidências incríveis.

Durante este tempo já me aconteceu ter de andar em hospitais e fazer na Quinta-Feira Santa, na minha terra (Paus, Resende), o funeral do meu irmão mais velho que faleceu canceroso. É a lei da vida. E oportunidade para a aprofundar a ela e à fé. E perceber melhor e mais intensa e dramaticamente aqueles e aquelas que não puderam sequer despedir-se dos seus entes queridos entretanto falecidos. Por isso é que tenho aconselhado vivamente os párocos e agentes pastorais a comprometerem-se a fazer, quando for possível, uma celebração condigna de homenagem aos que, entretanto, faleceram, também porque é necessário ajudar no luto ainda mais difícil.

  

O que mais o surpreendeu nos últimos dias entre os que o rodeiam ou daquilo que sabe pelas notícias?
Por um lado, a imensa generosidade e criatividade, de tantos no apoio, de todas as maneiras, a quem mais precisa, material ou espiritualmente. Fico comovido.

Por outro, tornou-se-me ainda mais claro que à frente das instituições, também religiosas, não se pode colocar incompetentes, hesitantes, temerosos.
Evidentemente, como já ficou subentendido, não tenho palavras para agradecer a tantos que arriscam até a saúde e a vida para cuidar dos outros em necessidade: médicos, enfermeiros, auxiliares, bombeiros, e todos aqueles e aquelas que anonimamente trabalham para que o país funcione minimamente… Os verdadeiros heróis e “santos da porta ao lado”, como diz o Papa Francisco.

 

João Céu e Silva entrevista Anselmo Borges
in Diário de Notícias | 19 de abril de 2020