Saltar para: Post [1], Comentar [2], Pesquisa e Arquivos [3]

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

ANTOLOGIA

  


AVISTANDO AO LONGE AS PIRÂMIDES…
por Camilo Martins de Oliveira


"Cheguei ao Cairo, instalei-me, escrevo-te da varanda do meu quarto, avistando ao longe as pirâmides de Gizé. Sinto-me um qualquer Professor Mortimer e quero desvendar mistérios, daqueles que se escondem nas grandes pirâmides, por serem túmulos, e se encerram no pensamento imperturbável das esfinges, por serem do outro mundo... Mas outra lembrança me desperta e me enche o coração de ternura e benquerer: leva-me à mesa de um restaurante debruçado sobre um mar que se agita muito, ao princípio de uma tarde de inverno, em que o sol vai surgindo e logo foge, soprado pelo vento e batido pela chuva. Estamos só nós dois, acabámos de almoçar e conversamos com a intimidade e confiança de um convívio antigo e secreto. Não sei porquê, solta-se-me simplesmente o gesto, e acaricio com dois dedos as rugas da pele do teu pescoço... Olhas-me como se esse contacto fosse esperado e habitual desde a antiguidade de ti. E ofereces-me um sorriso leve e breve, tão leve que o trago sempre comigo, tão breve que ainda me dura no coração. Não há discurso nem exaltação do amor que diga tanto como esse reconhecimento íntimo e silencioso da alma a que chamamos irmã, porque estava, quiçá, connosco desde antes da memória. No avião que me trouxe, fui lendo as "Lettres d´Égypte" do Pe. Teilhard de Chardin que, ouvi dizer, serão traduzidas para português por um sobrinho nosso. Endereçadas, entre 1905 e 1908, a seus pais, por Pierre Teilhard, são relatos coloquiais das mil e uma descobertas do Egipto por um jovem de vinte e tal anos. Sobre o Cairo de então, paira o fantasma do império otomano, cujo fim, na Turquia, virá com a proclamação da república: Mustafá Kemal (Atatürk) é eleito presidente em 1923. No Egipto, já os ingleses se lhe substituíram em 1882, tal como o farão, em 1917, na Palestina. Transcrevo-te este trecho de uma das cartas: "Finalmente, visitei as ruínas de uma mesquita muito antiga do Cairo... ...tem-se uma vista magnífica sobre todos os velhos bairros do Cairo, cobertos de minaretes, percorridos por ruas tortuosas, apinhadas de camelos, de melancias, de ovelhas e de árabes. Todo este movimento, visto de cima, longe do cheiro e da curiosidade indígena, era duplamente curioso de observar. Está-se a restaurar esta mesquita, como muitas outras na cidade. É uma boa obra, porque nisso fizeram os turcos coisas muito bonitas. Nestes dias, li um livro cheio de interesse para quem viu um pouco as coisas do Oriente: "Les mémoires du Marquis de  Noinel", por Vandal: a maioria dos aspetos dos costumes observados em Constantinopla, no reinado de Luís XIV, encontram-se ainda hoje por cá...".


Fui a esta carta do Marquês de Sarolea - e a esta citação do jovem Teilhard - por me ter chegado de Paris, ainda com cheiro a tinta, um livro de Vincent Lemire intitulado "Jérusalem 1900 - La ville sainte à l´âge des possibles", em que se fala do facto e feito histórico que foi o município intercomunitário, como entidade única e partilhada de gestão daquela urbe, de 1860 a 1930. A sua instituição facultou um período de convívio pacífico e governo comum (de muçulmanos, judeus e cristãos) e ainda se aguentou por mais treze anos, depois da substituição do império otomano pelo mandato britânico. Aquele ocupou Jerusalém durante quatro séculos, de 1517 a 1917. No tempo para que iremos olhar, a tolerância do governo otomano produziu frutos. Personagem central do pensamento fundador e da ação executora desse projeto de coexistência, partilha e identidade na cidadania da Cidade Santa, o palestino jerusalemita Yussuf Ziya al-Khalidi, que foi presidente da Câmara Municipal de Jerusalém e deputado, pelo mesmo círculo, ao Parlamento Otomano em Istambul. Escrevia ele, a 1 de março de 1899, ao Grande Rabino de França, Zadoc Kahn, este envolvido no crescente movimento sionista: "Gabo-me de não precisar de falar nos meus sentimentos para com o Vosso povo. Todos os que me conhecem sabem bem que não faço qualquer distinção entre Judeus, Cristãos e Muçulmanos. Inspiro-me sempre na sublime palavra do Nosso profeta Maleaqui: "Então não temos um pai comum a todos nós? Não foi o mesmo Deus que nos criou a todos?" E, noutro passo, sobre o Sionismo: "A ideia em si mesma é totalmente natural, bela e justa. Quem pode contestar o direito dos Judeus sobre a Palestina? Deus meu! Historicamente é mesmo o Vosso país! E que maravilhoso espetáculo seria se os Judeus, tão talentosos, fossem novamente reconstituídos numa nação independente, respeitada, feliz, podendo prestar, como outrora, serviços à humanidade!" Mas, com o realismo de um político palestiniano, que viu mundo, fala e escreve francês, alemão e inglês, além de turco otomano e árabe, acrescenta: "Temos de contar com a realidade, com os factos adquiridos, com a força brutal das circunstâncias. Ora a realidade é que a Palestina é agora parte integrante do Império otomano e, mais grave ainda, é habitada por outros além dos israelitas. Esta realidade, estes factos adquiridos, esta brutalidade das circunstâncias não deixam ao Sionismo, geograficamente, qualquer esperança de realização, e é sobretudo uma ameaça para os Judeus da Turquia". Tem razão Vincent Lemire quando considera que as reservas de al-Khalidi ao projeto sionista se fundamentam na sua experiência de gestão da Cidade Santa: "Fui durante dez anos presidente da Câmara de Jerusalém e, depois, deputado desta cidade ao Parlamento imperial, e ainda o sou; estou a trabalhar para o bem da cidade, para lhe levar água potável. Falo-vos pois com conhecimento de causa. Consideramo-nos, nós, Árabes e Turcos, como guardiães dos lugares sagrados para três religiões: o Judaísmo, o Cristianismo e o Islão. Pois bem: como podem os condutores do Sionismo imaginar que poderão arrancar esses lugares sagrados às duas outras religiões que são largamente maioritárias?" Da história dessa teimosia, nem o Tintin se livrou. Em "Au Pays de l´Or Noir", desembarcado em Haïfa, o nosso herói é raptado por terroristas judeus da "Irgoun", que o tomam por Salomão Goldstein. Por aí vai parar ao deserto, depois de um bando árabe ter interceptado o carro em que os seus primeiros raptores o levavam... O primeiro "Tintin" que recebi - e li com gosto - foi, em 1947, o "Tintin en Amérique". Presente de Camilo Maria. De então em diante, ao ritmo das suas edições, fui recebendo as outras aventuras do jornalista sem idade. Foi outro modo de o Marquês de Sarolea me abrir portas para o mundo...


Camilo Martins de Oliveira

 

Obs: Reposição de texto publicado em 15.02.2013 neste blogue.

Comentar:

Mais

Se preenchido, o e-mail é usado apenas para notificação de respostas.

Este blog tem comentários moderados.

Este blog optou por gravar os IPs de quem comenta os seus posts.