Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

ANTOLOGIA

  


UN TEOLOGO EN LA MUERTE…
por Camilo Martins de Oliveira 


Minha Princesa de mim,


Escreveu-me a NC um bilhete, gratificante para mim, sobre umas reflexões que me ouvira durante o jantar em casa dos C de T. Referia-se à minha meditação sobre o amor como comunicação, procura do outro, movimento perpétuo, e a perplexidade como desamor, paragem. Perplexo - até na sua raiz latina - é o que está atado, embaraçado, ou seja, confuso, indeciso, condenado ao imobilismo. O amor não sabe lidar com a perplexidade, porque é necessariamente generoso e a generosidade é uma atitude da alma como gesto para o outro. "Generositas", em latim, quer dizer nobreza, aquilo que tem qualidade; o seu radical é "genus" que significa nascimento, origem. E, assim também, genuíno se diz do que é verdadeiro, autêntico, inato. O amor é verdade marcada, desde o início, no coração dos homens. É princípio e fim de tudo. Não hesita, é um impulso vital. Quando ocorre a morte de um ente querido, ou nos escandaliza o sofrimento, a miséria, o mal espalhado pelo mundo, há um momento de perplexidade em nós, como se Deus nos tivesse traído. Até Cristo gritou, do alto do martírio da sua cruz: "Pai, porque me abandonaste?" O impulso genético do amor esbarra no absurdo. Só sabemos, então, que o absurdo não se explica. E hesitamos entre essa perplexidade - que nos fecha a Deus, aos outros, ao mundo, e nos imobiliza na impotência - e o amor que nos abre e empurra para fora de nós, ao encontro do outro. A escolha será nossa: amor e perplexidade não são compatíveis. Parafraseando o Ortega y Gasset ("el hombre es un transfuga de la naturaleza"), diria que o amor é um trânsfuga da condição individual: só se torna atual se nos transcendermos por pensamentos, palavras e obras que não nos confinem na paixão dos nossos limites. Quem passou pelo sofrimento de um amor traído, ou de uma amizade esquecida, saberá melhor o que custa, afinal, ser fiel: porque, quando ficou perplexo, terá tido ganas de acusar o outro, de se vingar, fazendo-o sofrer, tornando-o expiatório. Talvez ainda, quando mais resignado a uma fatalidade sofrida como injustiça, fosse tentado a quedar-se na perplexidade, rendido à amargura e à desilusão. Ou, quiçá, tenha feito da sua mágoa uma oferta, guardando serenamente no coração o amor como dom... Dom de si na comunhão de todos, nessa comunicação inesgotável com o nosso ser universal. O amor põe-nos na eternidade, vem do princípio antes de nós e vai até além de qualquer limite que possamos conceber. Recordo "Un teólogo en la muerte", do Jorge Luis Borges, inspirado num relato dos "Arcania Caelestia" de Emanuel Swedenborg: «Los ángeles me comunicaron que quando falleció Melanchton, le fué suministrada en el otro mundo una casa ilusoriamente igual a la que habia tenido en la tierra. (A casi todos los recién venidos a la eternidad les sucede lo mismo y por eso creen que no han muerto). Los objetos domesticos eran iguales: la mesa, el escritorio con sus cajones, la biblioteca. En cuanto Melanchton se despertió en ese domicilio, reanudó sus tareas literarias como si no fuera un cadáver y escribió durante unos días sobre la justificación por la fe. Como era su costumbre no dijo una palabra sobre la caridad. Los ángeles notaran esa omissión y mandaron personas a interrogarlo. Melanchton les dijo: "He demonstrado irrefutablemente que el alma puede prescindir de la caridad y que para ingresar en el cielo basta la fe." Esas cosas les decía con soberbia y no sabia que ya estaba muerto y que su lugar no era el cielo. Cuando los ángeles oyeron esse discurso lo abandonaran”». O conceito de justificação pela fé, do protestante Melanchton, mesmo com o pensamento na suposta libertação dos fiéis cristãos da tutela uniformizadora da doutrina e da prática religiosa impostas pela igreja católica, resultará finalmente em fundamentalismos exclusivistas, essencialmente análogos ao espírito da Santa Inquisição. Como se a verdade que cada um entende -  e em que acredita - fosse superior ao amor que, à imagem e semelhança de Deus, deve ser comum a todos. "Ama e faz o que queres", disse Agostinho. "Ubi est caritas ibi Deus est", diz a tradição do ensinamento de Jesus. O único antídoto para a concupiscência -  que é pensar e fazer por si sem ver o Outro - é o bem-querer, é a humildade intangível de querer o bem. O que está inscrito, no coração dos homens, não é esta ou aquela fé. É simplesmente a fé no amor que se comunica e salva todos. Poderei crer que a forma de fé que professo seja aquela em que melhor se revela e realiza o amor primordial. E nesse movimento quererei comunicá-la. Sem nunca me esquecer de que não sou dono do amor. Assim também, no amor humano, o que vale não é o que no outro mais me agrada ou desagrada. É, tão difícil e simplesmente, a procura da comunicação. Mesmo a comunhão dos santos não é uma uniformidade, nem há comunhão se não houver diferença. Comungar é juntar em paz, num só corpo, as nossas diferenças. No seu diário íntimo, Alma Werfel que, nesse mês de janeiro de 1902, viria a chamar-se, pelo casamento com Gustav - o compositor, maestro e diretor da Ópera de Viena - Alma Mahler, escreve: " Ele quer mudar-me, mudar-me completamente. E eu também quero. Consigo-o enquanto estou a seu lado - mas basta-me ficar sozinha para que o meu outro eu, esta cabeça má e vaidosa, tenha vontade de reaparecer...  ... Ontem à tarde, suplicou-me que lhe falasse - e eu não consegui encontrar uma única palavra calorosa. Nem uma. Chorei. E nada mais...".  Alberto Moravia conclui o seu romance sobre o amor conjugal com este diálogo, numa igreja em ruínas, mas acolhedora, entre o narrador e sua mulher, já com história feita de encontros e desencontros: "- Penso que, daqui a uns tempos, quando nos conhecermos melhor, deverás, como ontem à noite dizias, recomeçar a escrever este romance... e tenho a certeza de que farás uma coisa bem feita! (diz a mulher). Não respondi e limitei-me a acariciar-lhe a mão. Mas por cima do seu ombro vislumbrei o capitel com cara de demónio, e pensei que, para retomar o meu romance, precisaria não só de conhecer o diabo tão bem como o canteiro que o esculpira, mas de conhecer igualmente o seu contrário. - Precisarei de muito tempo... - disse, com doçura. E estas palavras, pronunciadas em voz alta, concluíram o meu pensamento". E termino eu mais esta etapa da nossa digressão pelo labirinto claro da mente de Camilo Maria. Recordando a afirmação que encerra o "Some like it hot" do Billy Wilder: "Nobody is perfect!"


Camilo Martins de Oliveira


Obs: Reposição de texto publicado em 10.05.13 neste blogue