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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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ANTOLOGIA

  


LITERATURA E MÚSICA
por Camilo Martins de Oliveira


Minha Princesa de mim:


"Regresso de Kyoto a Tokyo, mas não escapo às associações recreativas de senhoras japonesas. Num jantar na embaixada de França, fico à mesa presidida pela embaixatriz, ao lado da Senhora Totomi, próxima da família imperial e presidente de "Les Amies de la Langue Française", clube de senhoras da "alta", que reúne japonesas eruditas e outras francófonas do corpo diplomático. A dama é do tipo arredondado - de corpo e espírito - esperta e bem humorada. Fala-me do seu grupo de cultura e recreio, e desafia-me a entretê-las, num chá, com uma charla sobre literatura e música francesa. Animado pelo Château Margaux, digo-lhe que mais facilmente lhe diria sim se o grupo antes se chamasse "Les Joyeuses Filles de la Langue Française" ou "Les Parlantes de Français Galant"... Ri-se, com a mão gordinha, como terceira bochecha, a esconder-lhe a boca gulosa, e concede: "Chame-nos o que lhe parecer bem, mas tenha a gentileza de nos falar de literatura e música!" Assim me arrancou um assentimento condicional: proponho-me levar-lhes algumas poesias em várias línguas europeias, todas elas traduzidas em música, ou temas que a literatura e a música tenham coincidentemente tratado. E prometo não esquecer discos que as reproduzam. Não recorrerei sempre a libretos de ópera, nem a letras propositadamente feitas para canções... Assim se desenhou o programa que contigo aqui partilho. Apetece-me começar pelo alemão, não por me dirigir a francófonas, nem por me ser familiar, mas por me ocorrer a semelhança dos apelidos do poeta (Christian Schubart) e do compositor (Franz Schubert). Ou por me acontecer trautear a "Die Forelle" quando estugo o passo na pressa de ir fazer chichi. Brinco. O "lied" de Schubert - que ouvi pela primeira vez adolescente ainda - canta as palavras de Schubart, começando ledamente assim: "In einem Bächlein helle, / Da shoss in froher Eil/ Die launige Forelle, etc... Num límpido ribeiro, alegremente, a truta foge, viva, veloz e caprichosa. E eu na margem, em doce sossego observava o alegre banho da bela na clara água do ribeiro.  Ein Fischer mit der Rute, etc... Resumindo: esse pescador à linha, da margem vê o peixinho a mover-se, e o poeta pensa que ele não apanhará a truta com o anzol. Mas eis que esse ladrão, num movimento de onda, a prende, e o poeta sente, com o coração aos pulos, o debater da presa. Depois, o poema conclui com um aviso à juventude sobre o perigo da inconsciência, e com uma evocação erótica, que o "lied" de Schubert não retoma: "Denkt doch an die Forelle;/ Seht ihr Gefahr, so eilt!/ Meist fehlt ihr nur aus Mangel/ Der Klugheit. Mädchen, seht/ Verführer mit der Angel! Sonst blutet ihr zu spät...". Pensem pois na truta e se um perigo vier, fugi! A mais das vezes é por falta de prudência que pecais. Sede vigilantes, meninas de olhos doces, com os pescadores! Podereis sangrar tarde demais.


Uma das senhoras pergunta-me porque não escolhi antes a "Ode à Alegria" do Schiller, que é, afinal, um hino à amizade (seria então "An die Freunde" em vez de "Freude") que coroa a 9ª sinfonia de Beethoven. Respondo que "Die Forelle" me parece muito próximo do espírito da poesia japonesa pelo recurso à natureza como metáfora. E recito "tobu ayu no soko ni kumo yuku nagare kana", um "haiku" de Onitsura, que se pode traduzir mais ou menos assim: "um peixe voador...nuvens por debaixo, fluindo na corrente..." Ou seja: o peixinho, saltando, sobe o ribeiro (para ir desovar a montante)... e, refletindo-se nas claras águas, as nuvens parecem deixar-se levar para o mar... Alusão à efemeridade da vida: estes peixes ("sweetfish", em inglês) nascem no alto dos rios donde depois descem, na Primavera, até ao mar donde regressam, no Verão, para subirem contra a corrente e porem acima os seus ovos (como o peixinho do "haiku"). No Outono, regressam ao mar, para morrer. Vivem um ano só. Ponho a tocar no gira-discos "Die Forelle", cantada pela Elisabeth Schwarzkopf, acompanhada ao piano por Gerald Moore. E logo salto do alemão para o castelhano, da Germânia para a Hispânia. De Franz Schubert para Manuel de Falla, de peixes e nuvens, que as águas da vida percorrem, para flores e pássaros que a terra pára, porque é assim o tempo: corrente ou quieto, somos nós que passamos por ele. E ocorre-me a "arte poética" do Jorge Luis Borges: "Mirar el rio hecho de tiempo y agua / Y recordar que el tiempo es otro río, / Saber que nos perdemos como el río / Y que los rostros pasan como el agua." Antes de ouvirmos todos (devia dizer todas, sou o único homem na sala!) uns trechos de "La Vida Breve" do Falla, pela Orquestra Nacional de España, dirigida por Rafael Frühbeck de Burgos, e com Victoria de los Angeles no papel de Salud, leio-lhes uns versos da seguidilha, que são, como todo esse drama musicado por Falla, de Carlos Fernández Shaw: "Flor que nace con el alba / se muere al morir el dia. / Que felices son las flores,/ que apenas puen enterarse, / de lo mala que es la vía! / Un pájaro, solo y triste, /  vino a morir en mi puerta; / cayó y se murió en seguía. / Pa vivir tan triste y solo / mas le vale haberse muerto!" Enquanto as damas escutam, em concentrado arrebatamento, calado vou pensando no meu próximo passo, numa ponte para um tema japonês. E surge-me a "Glover Mansion", em Nagasaki, que se celebra como sítio do amor letal de Cio-Cio San por Pinkerton, na "Madama Butterfly" do Puccini: "mutatis mutandis" (a localização e uns pormenores) está ali o tema de "La Vida Breve". Que é, penso eu, mais do que o do amor humano " traído", o da perplexidade enquanto incredibilidade onde a esperança morre. Porque, afinal, nem Salud nem Cio-Cio morrem, muito embora partam deste mundo. Permanecem na memória de muitos corações e testemunham o desengano, essa pena terrível. Será isso o inferno: não haver esperança? As madamas da sala lembram-se logo da "Madame Chrysanthème" do Pierre Lotti, que também inspirou outra ópera: a "Lakmé" do Delibes. Uma das senhoras, todavia, alvitra que o fogo inicial da japonesa abandonada se acendera já no século XVI, por um português marinheiro... A ária mais conhecida da "Butterfly" - e quiçá a mais bonita - é um canto de esperança que lhe sai do fundo da alma: "Un bel di vedremo / levarsi un fil di fumo / sul estremo confin del mare. / E poi la nave appare - poi la nave bianca / entra nel porto, romba / il suo saluto. Vedi? / È venuto!" Aproveito a emoção inesperada daquelas senhoras instaladas em vidas onde o amor, muitas vezes, é um episódio passageiro ou uma convenção, para lhes falar de uma perspetiva escatológica, que lhes é culturalmente estranha: o amor humano, porque gerador e portador de esperança, é uma promessa. E promessa é compromisso. Para um cristão, adianto, é um sacramento, um sinal do que se há-de cumprir um dia. "Un bel di vedremo...". Com tanta conversa e música, esqueci o tempo e esse jeito de as mulheres japonesas levarem a água ao seu moinho. Ficou combinado voltar e falar-lhes do nome que se diz ou não deve dizer: de Turandot e de Lohengrin. Depois te contarei. Vou agora escrever ao nosso Camilo Português: penso dar-lhe conselhos, mas afinal desabafo-lhe inquietações. Envelheço.


Adeus Princesa!"


A carta que Camilo Maria me escreveu e aqui refere manifesta a sua preocupação com a deterioração da consciência ética no governo das sociedades ocidentais. Publicá-la-ei, apesar de lhe sentir algum cansaço, que nem a ironia com que sempre nos fazia rir consegue disfarçar.


Camilo Martins de Oliveira


Obs: Reposição de texto publicado em 07.06.13 neste blogue

 

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