ANTOLOGIA
DAQUI POR TRINTA ANOS, TELEFONA-ME…
por Camilo Martins de Oliveira
Querido Camilo Português:
"Episódio, no seu grego de origem, quer dizer o que se acrescenta, vem a mais ou a seguir. O acessório. Pela sua evolução semântica, nas nossas línguas europeias de raiz greco-latina, um episódio é parte de algo que passa (como num folhetim da rádio ou numa telenovela), ou ainda um acontecimento fugaz que, divertido ou trágico, não nos merece especial consideração, nem mais memória do que aquela que possamos guardar para divertir uns salões... Os episódios, "ontologicamente", têm o valor do que se lê em crónicas mundanas das revistas da coscuvilhice universal. Genialmente, o nosso Georges Rémy (Hergé) apresenta os jornalistas que, em "Bijoux de la Castafiore", insistem em proclamar ao mundo as núpcias próximas da diva italiana de papagaio nariz com o honrado Capitaine Haddock, como enviados especiais da revista "Paris Flash". Aí está tudo: flash, flash, flash! (Curiosamente, o nosso capitão leva-me sempre àquele disco de vinil, em que me delicio a ouvir o Fernandel contar Alphonse Daudet, com o sotaque do "midi" que tanto nos aproxima e torna amigos da língua francesa: "L’abbé Martin était curé de Cucugnan. Bon comme le pain, franc comme le vin, il aimait passionément ses cucugnanais"... No amor do padre Martin pelos seus paroquianos, como nas fúrias do "capitaine de long cours" contra o supérfluo, estamos a transpor um passo: o que deixa o vaporoso e busca a densidade, o que separa a moda do "clássico". Clássico é o que tem classe, o que se qualificou para ser classificado, como referência, numa cultura. Não é sinónimo de erudito, nem necessariamente erudito será. Na nossa cultura clássica abundam as referências que a sustentam e são de origem comunitária e foram sendo transmitidas por tradição oral: Homero, a Bíblia, os provérbios e canções populares, incluindo, no seu microcosmos, o fadinho castiço dos meus primos lusitanos... Claro que tudo se renova e deve ser renovado, que não haverá futuro conveniente sem "aggiornamento". Mas convirá também não cairmos em tentações apressadas e ilusórias. Que nos levem a aceitar o que um americano já chamou "the triumph of vulgarity". A questão que se nos põe é a de saber até que ponto seremos capazes de nos servir dos novos meios de produção e comunicação, sem nos tornarmos, afinal, nós, os servos deles. Na cultura clássica - e não me refiro sobretudo à antiguidade nem aos mosteiros e estudos gerais da nossa Idade Média, mas penso nos seis séculos de divulgação do pensamento escrito pela imprensa, nisso a que Mc Luhan Marshall chamou a galáxia Gutenberg - o tempo para refletir e comunicar era mais lento e por isso as ideias e os discursos duravam mais. Também o cérebro humano era educado para compreender e criticar. Aprendia-se a ler e escrever, indo ao dicionário enriquecer o vocabulário e dividindo orações para melhor entender sentidos e concordâncias; aprendia-se a contar e a calcular de cabeça e com lápis e papel. A cultura começava aí, nesse revolver, adubar, semear a terra cerebral. Ou, como na cultura física, em ginasticar a cabeça. Ganhava-se capacidade para discernir e pensar, despertava-se o espírito crítico. A nossa cabecinha preparava-se assim para poder ir distinguindo o certo do errado e perceber o papel do tempo (e, com ele, do esforço) no acerto das coisas. E o critério ia orientando o recurso a utensílios e instrumentos que sabíamos controlar. O estudo da história ensinava-nos a nossa vida antes de nós, e sobretudo tornava-nos membros de uma família muito maior, à dimensão da humanidade. E dava-nos o sentido de uma pertença, que é onde se alicerça a fidelidade. Fidelidade não é antónimo de desacordo, nem sequer de divergência, e muito menos de interrogação... Lutero entrou em desacordo com a hierarquia e o próprio papa - e, divergiu, em várias afirmações doutrinais e práticas religiosas, da Igreja Católica Romana - mas eu não posso dizer que Lutero e todos os luteranos e os outros cristãos que confessam a fé nas igrejas reformadas sejam infiéis. Recordo muitas vezes que a bula "Exsurge Domino" pela qual o papa excomungava Martim Lutero, publicada em 1520, leva o reformador alemão a refugiar-se no castelo de Wartburg até 1522, ano em que inicia a sua tradução da Bíblia em vernáculo. A primeira edição da Bíblia alemã de Lutero será feita só em 1534, no mesmo ano da fundação da Companhia de Jesus. Serve a coincidência para nos lembrar de que as divergências da Reforma e da Contra-Reforma pertencem à mesma linhagem e se inspiram e vivem na cultura da cristandade europeia. E por maiores que pareçam essas divergências entre as confissões cristãs, há sempre um ar de família... A memória comum do fundamento da mesma fé e das raízes da cultura envolvente, reúne-nos, a todos, para além das características próprias a cada grupo, e a cada tempo histórico, numa identidade que, pela mesmíssima dinâmica da sua constituição, tem uma vocação universal. Não no sentido de integradora indiscriminada, nem do de "colonizadora"... Mas enquanto proposta de encontro e convivência, de diálogo. A afirmação excessiva de particularismos religiosos e nacionais levou os europeus a afrontarem-se - em guerras religiosas, políticas, militares, económicas e comerciais - dentro e fora da Europa, por esse mundo e por tempo demais. É aliás curioso notar que as barbáries conhecidas por "Grandes Guerras Mundiais" sejam ambas, na origem, guerras europeias. E, no caso da 2ª, no lado de lá do mundo, o Japão não resistiu à tentação de "imitar" o que considerava o exemplo da expansão imperial e colonial das potências europeias. A tua geração, meu querido Camilo, tem pela frente uma tarefa difícil, já que o progressivo esvaziamento da cultura dos povos europeus da sua tradição clássica (memória, sabedoria, valores, fé) será, em vários sentidos, uma "capitis diminutio": a perda de identidade cultural levará ao enfraquecimento do juízo e do discernimento, ao relaxamento dos critérios de moralidade e de comportamento, à incapacidade de organização social, política e diplomática. A preocupação excessiva com o crescimento económico e a afirmação do dinheiro como critério de todas as coisas vão conduzindo o poder político para fora do exercício de funções ao serviço do bem comum (que não pode resumir-se ao conceito vadio de "criação de riqueza") e para o apagamento, quando não é subserviência, face à liderança crescente dos detentores de poder financeiro e manipuladores dos interesses e iniciativas inerentes. Sinais preocupantes são, desde já, a propagação de otimismos - que me parecem bastante infantis e desligados de qualquer esforço de ponderação pela perspetiva da antropologia e da psicologia social - autointitulados "doutrina neoliberal" e preconizadores da total desregulação dos mercados como abertura da porta de entrada no paraíso terrestre da riqueza e consumo para todos... Nos EUA, até apareceram, nestes anos 70, uns livros de fundamentação teológica da bondade do lucro. Está na moda. Entretanto, vão-se assinando acordos internacionais visando a livre circulação de bens, serviços e capitais... sem que haja o esforço jurídico, legislativo e diplomático correspondente, nas áreas do direito fiscal ou laboral, nem na regulação rigorosa das praças e dos movimentos financeiros, bem como dos produtos por esse sector lançados no mercado. Já no dealbar do capitalismo de economia financeira - que a revolução industrial produziu na viragem do século XIX para o XX - o Padre Lacordaire lembrava que entre o rico e o pobre é a liberdade que subjuga e o direito que liberta. Da concorrência entre os poderosos grupos de interesses de então, ainda marcadamente nacionais, surgiu a 1ª Grande Guerra, com os seus milhões de sacrificados. A humilhação imposta à Alemanha vencida e o respetivo tributo económico conduziu ao que sabemos... Pensou-se depois que, com certa internacionalização de interesses e a globalização dos mercados que se oferecia com o processo de descolonização, iríamos entrar num período de crescimento generalizado: impunha-se apenas liberalizar, e deixar os "mercados" regularem o resto e fazer-nos ricos. Nestes anos finais da década de 70, há já quem se interrogue, por um lado, sobre a afirmação do Japão como potência económica, industrial e tecnológica - mas parece-me que este exemplo despertará novos intervenientes no mercado mundial, alguns dos quais beneficiando, além do nível de educação e da disciplina social que o Japão tem, de mão de obra barata e de um poder político centralizado e ativo (que poderá conduzir, no mercado internacional, à concorrência de empresas estatais "capitalistas"). Por outro lado, menos gente já percebe que a liberdade crescente dos movimentos financeiros - num mundo com evidentes desigualdades de tratamento de questões na ordem das relações industriais e laborais, das obrigações fiscais, da justiça social e dos direitos humanos - levará inevitavelmente a movimentos de deslocalização, sem esquecer a quase impossibilidade de controlo dos capitais... Daqui por trinta anos, telefona-me para o céu, a contar como está tudo por cá. Espero que a infinita misericórdia de Deus me leve para o céu e me livre do inferno. Quanto mais não seja, por ser mais difícil comunicar com o inferno: as linhas devem estar todas saturadas, com pornografia e transações financeiras... Sabes o carinho paternal com que te abraço."
Esta carta do Marquês de Sarolea foi a primeira em que lhe senti algum cansaço.
Camilo Martins de Oliveira
Obs: Reposição de texto publicado em 14.06.13 neste blogue