ANTOLOGIA
EM MEMÓRIA DE S. CAMILO DE LELLIS
por Camilo Martins de Oliveira
Minha Princesa de mim:
Passei quase toda a noite a ler, mas levantei-me às 5. Para abrir muitas janelas, nos três pisos desta casa em que estou sozinho. Assim foi entrando, até às 7h30, a frescura de uma madrugada tépida... Cerrei então tudo, para que a casa guarde ciosamente, na sombra, algum refrigério. O dia anuncia-se muito quente, não posso deixar entrar o sol, nem sequer a reverberação da luz exterior. Faço como o andaluz, recolho-me no segredo da quase escuridão. Eu mesmo me encerro e mergulho numa penumbra interior e silenciosa. Refresco a alma, só me faz bem... Escuto, no meu antro, as sonatas e partitas para violino solo, de Bach. Ocorreu-me ouvi-las, ao reler, durante a noite, o "Ana Karénina". Porquê? Talvez porque, no caminho para a estação ferroviária onde fatalmente se atiraria para debaixo de um comboio, a infeliz Karénina fosse pensando que não é por muito correr que conseguimos fugir de nós mesmos. Morreremos como borboletas na chama das paixões que nos consomem... Fujo hoje à canícula do dia, no silêncio e na sombra me hei-de encontrar com a saudade antiga de mim. Pararei no sossego e deixarei que o meu olhar se vá lavando, no escuro, de tantos enganos e ilusões que o turvam. Até que madrugue uma alva mansa e na manhã que nascer no meu coração a luz se vá fazendo dia. O dia em que terei de viver, agora e na hora da minha morte. Foi na festa de S. Camilo de Lellis - um estouvado militar que, no dia em que abriu o olhar sobre a desumanidade do sofrimento físico dos estropiados da guerra, se converteu ao serviço de doentes, feridos e necessitados - que a senhora Hoshino devolveu o corpo à terra. Em Tokyo, no Verão quente e húmido. Suicidara-se com barbitúricos, dois dias antes. Era mãe de dois adolescentes e mulher do filho da senhoria da casa onde eu morava. Esta situava-se num parque adjacente à habitação dos senhores que desde o início do período Edo ali possuíam vasta propriedade. Vivendo sozinho, tinha eu por hábito descuidar as janelas abertas e ouvir os "meus discos" de música "clássica" alto e bom som. Certo dia, fui convidado para um jantar japonês em casa da senhora viúva Hoshino, sogra da outra e proprietária da minha moradia. Gentilmente, em sinal de hospitalidade amiga, tocou para mim o seu "koto", falou-me do marido defunto, professor universitário, e das voltas que com ele dera pelo mundo, de arte, literatura e filosofia. Perguntou-me sobre a minha religião, e se a praticava no Japão. Á boa moda nipónica, sempre afável, sem deixar de ser formal. Disse-me que o filho e a nora tinham reparado no meu gosto pela música, porque o som lhes chegava à dependência onde viviam, mais próxima da minha casa... Recebi o recado e, no dia seguinte, fui bater à porta do casal e pedir-lhes desculpa pela perturbação que lhes causava. Responderam-me que continuasse e até aumentasse o volume, porque era sempre lindo o que ouviam. O meu motorista, que conhecia bem a cidade e o bairro, teve dificuldade em identificar a igreja onde se celebrou o ofício fúnebre. Era um templo católico, os Hoshino pertenciam a uma casta da nobreza japonesa que, depois da restauração Meiji, e ao cabo de 250 anos de clandestinidade, voltara ao culto da igreja romana. Nunca mo disseram, e vivi dez anos naquela casa. O filho de 13 anos tocou, durante a cerimónia, o adagio da 1ª sonata para violino solo do Bach. Eu dei o braço à senhora Hoshino, velhinha, a caminho da mesa da comunhão. No fim, avó, filho e netos disseram-me que a morta gostava muito da música que lhes chegava de minha casa. No romance de Tolstoi, não é o adultério de Ana, nem a sua perdição, o tema central. A história infeliz do amor da mulher, cujo nome serve de título ao livro, com o conde Vronski é contraponto da aventura interior de Lévin, quiçá a personagem mais próxima do seu autor, em todo o universo romanesco do grande escritor russo. Tal como a Karenina, Lévin é um "misfit", um desadaptado à sociedade em que vive como que desalojado dela. Mas Ana sente-se injustamente castigada pelo ostracismo a que é votada por ter abandonado o marido, num ambiente social em que se toleram tantos outros adultérios, desde que seja respeitada a convenção da hipocrisia. Ela só questionará o impulso da sua paixão quando o afastamento do seu círculo social lhe provocar desconfianças e ciúmes. Assim perderá a luta contra a convenção social e será letalmente vencida pela sua própria paixão... Constantino Lévin, perante uma primeira recusa de Catarina Schebartski, com quem virá, afinal, a casar, entrega-se ainda mais aos seus projetos de desenvolvimento rural, afasta-se de uma sociedade cosmopolita e fútil e vai descobrindo, no convívio e no trabalho dos campos, o povo dos "mujiks", ao qual se sente aristocraticamente superior, mas que irá progressivamente chamando a participar na sua obra. Esse homem, que deixou de ser crente, não entende logo o itinerário que Deus lhe predestinou para se lhe revelar: o do serviço do próximo, dos outros. Quando finalmente percebe que esse desejo de encontrar os outros, de os servir, ou de servir com eles, nasce do encontro, no fundo de si mesmo, com uma identidade antiga e destinada à transcendência, ele pensa que aconteceu um milagre que naturalmente fará dele um ser perfeito. Até deparar novamente com os desagrados e zangas, enganos, raivinhas e desilusões do dia a dia. E aí se aceita a si e recebe a compreensão da luz que nele se revelou: "Não deixarei de continuar a zangar-me com o cocheiro Ivan, não deixarei de discutir nem de dizer o que penso fora de propósito. Manter-se-á a separação entre o santuário íntimo da minha alma e os outros, continuarei a pôr na minha mulher a culpa dos meus temores, e disso me arrependerei depois. A minha razão não entenderá porque rezo, mas, toda inteirinha, a minha vida, aconteça o que acontecer, em momento algum deixará de ter sentido, como dantes julgava, mas ganhará sempre o sentido do bem, de todo o bem que eu queira pôr nela. "Com esta confissão de Lévin termina o romance. A lembrar-me o provérbio português que Paul Claudel inscreveu em frontespício a "Le Soulier de Satin": Deus escreve direito por linhas tortas... Camilo é nome romano, dizem que de origem fenícia. Seja como for, é nome comum na minha ascendência ítalo-espanhola. Camilo se chamava meu avô materno e muitos antes dele. Desde pequeno me habituei a celebrar a festa do meu santo onomástico a 18 de julho (a 14, desde o Vaticano II). Na penumbra benfazeja desta casa silenciosa e vazia, folheio o velho missal da senhora minha mãe, e encontro, a marcar a página da missa de S. Camilo, uma imagem representando um coro de anjos pintado por Fra Angelico. No verso, minha mãe escrevera uma "Prière d’une Maman": "Ao pedir-Vos que o abençoeis, e ao abençoá-lo em vosso nome, não Vos peço para ele o orvalho do céu, nem o húmus da terra; mas ousando determinar algo que Vos peça para a sua vida temporal, peço-vos que não lhe deis riqueza nem pobreza, mas apenas a modéstia e o gosto de bem servir... Como Camilo de Lellis junto dos doentes que servia em nome da cruz vermelha que trazia ao peito. "Também só muito depois da morte de minha mãe descobri a oração que, por muitos anos, ela silenciosamente por mim dizia. E de que não sou digno." Junto a esta carta de Camilo Maria, a Princesa de... guardou outra, distante no tempo, em que ele lhe falava de igrejas orientais e ícones. De outros vislumbres da misteriosa presença de Deus.
Camilo Martins de Oliveira
Obs: Reposição de texto publicado em 08.10.13 neste blogue.