AS ARTES E O PROCESSO CRIATIVO
XVI - SURREALISMO - III
A PARANOIA CRÍTICA DE DALÍ (II) E O SEU MISTICISMO
1. Expulsão do Movimento Surrealista
Breton era admirador, amigo e colega de Dalí. Um dia incompatibilizaram-se. Dalí criara uma obra intitulada O Enigma de Guilherme Tell (1933). Foi tida como uma tela difamatória de Lenine, que aparece desnudado e com a parte central posterior do corpo deformada e sustentada por um estilingue. É a banalização, desmistificação e dessacralização de um mito e símbolo revolucionário. Breton quando a viu, numa exposição, tentou destrui-la. Não conseguiu, dado que Dalí, propositadamente, a colocara tão alto, que inviabilizara o seu alcance. Tida como uma afronta grave à causa revolucionária, o seu autor foi convocado pelo líder do movimento surrealista para uma reunião em 5 de fevereiro de 1934, onde estavam presentes, além de Breton, Ernst, Brauner, Hugnet, Hérold, Oppenheim, Péret e Tanguy. Para Breton era imperdoável aquele quadro, chegando a exclamar: “Esconde esse traseiro anamórfico que sou incapaz de ver!”.
Reunido o areópago surrealista, Breton fez a sua exposição contra Dalí, sendo visto, por este, como o grande inquisidor ou procurador geral. Dalí ouvia-o e replicava, fazia-se de surpreendido, invocava o credo surrealista, ao mesmo tempo que com um termómetro na boca, encenando febre e gripe, se ia desvestindo, entre gargalhadas gerais, astutas e irónicas súplicas de compreensão e perdão. Terminou a sua defesa em tronco nu, respondendo que naquele quadro tinha feito um ato de surrealismo total ao pintar os seus sonhos em pormenor, fazendo jus do seu método da paranoia crítica de associações delirantes, através de uma interpretação livre e libertária dos sonhos, dizendo: “É o mesmo, meu querido Breton, se hoje à noite sonhar que fizemos amor, pois amanhã de manhã pintarei as nossas mais belas posições com grande riqueza de detalhes”. Era demais para Breton. Dalí seria excomungado e expulso do grupo.
Acusado de ser surrealista demais, tinha os seus acusadores e detratores como “intelectuais feitos de papel higiénico”, cujas acusações se baseavam em critérios políticos e morais desprovidos de valor em relação às suas convicções paranoico-críticas, pondo a sua arte acima da política, inaceitável para um grupo de pretensões revolucionárias em que inicialmente se integrou e de que divergiria para sempre.
Para a rutura e a expulsão também contribuiu o choque provocado pela pintura “O Jogo Lúgubre” (1929), em que se vê um homem de costas com matérias fecais, que Breton impunha que afirmasse ser um detalhe escatológico de uma máscara, sendo para o autor uma forma de se libertar dos seus terrores obedecendo aos seus impulsos inconscientes. Iconoclasta e sacrílego, talvez. Coprófago, como era acusado, não. Foi maioritariamente interpretado como representando o lado escatológico do ser humano via introdução da coprofagia nas suas obras.
Também o quadro O Grande Masturbador (1929) contribuiu para ser tido como insuportavelmente chamativo, irreverente e ofensivo, sem esquecer o texto com o mesmo título, publicado em 1930, que foi alvo de críticas contundentes do partido comunista francês, segundo o qual “a moral proletária” não se compadecia com indecências sexuais de “intelectuais pequeno-burgueses”, acabando por marcar uma clivagem não reversível entre surrealistas estalinistas (Aragon, Sadoul, Pau Éluard) e os demais, de Breton a Péret.
De integrista, na adesão ao movimento, a relapso e subsequente expulsão, Dalí desafiou todas as crenças, a que não foi alheio o seu egocentrismo, funambulismo, vaidade e aquilo a que hoje se chama uma personalidade politicamente incorreta.
Dizendo-se apolítico na arte, acusava os opositores de engajados a preconceitos de toda a espécie, em quem os arquétipos da moral clássica tinham depositado marcas inapagáveis. Tinha-os como medrosos, fazedores e cultores de medos inultrapassáveis e de que teoricamente se diziam libertos, quer por imbuídos de preconceitos e tabus recalcados no inconsciente, quer por os ter como contrarrevolucionários, embora se tivessem como revolucionários. Quanto mais temerosos, mais os obcecava com o que temiam. Em certo sentido e em bom rigor, era humano e real tudo o que criava, nas suas pinturas e paisagens oníricas, metáforas, fantasias e sonhos, baseado no método paranoico-crítico, via objetivação crítica e sistemática de associações e interpretações delirantes, mesmo que surreal ou mistura do real com o irreal, dada a realidade real com que todos nos confrontamos, queiramos ou não. O que tinha como transversal a proletários e burgueses, exploradores e explorados, conservadores e revolucionários, pessoas de toda a condição social, política ou outra. Por muito chocante que fosse a alegada indecência, fantasias eróticas e uma irreverente ausência de pudor. Nesta perspetiva, tinha inaceitável uma hierarquia de valores quanto aos sonhos e posturas políticas.
2. Pintura Mística e Religiosa
A arte e a personalidade dalinianas não ficariam por aqui. Além de colaborar no cinema (Buñuel, Hitchcock, Disney), escreveu livros (de ficção, diários, ensaios), fez fotografia, desenhos e imagens para joias, vestuário e objetos decorativos. Querendo assim ser um artista total, segundo uns. Ou um ganancioso ávido de dinheiro, adaptando-se consoante a oportunidade e circunstâncias, para outros. Breton apelidou-o de Avida Dollars, respondendo Dalí com A Apoteose do Dólar (1965).
E além de outras obras marcantes do seu surrealismo clássico, como A Metamorfose de Narciso (1937), há ainda a sua pintura mística e religiosa, numa fase posterior, como o Cristo de São João da Cruz (1951), que viu num sonho cósmico, optando por uma transcendental beleza metafísica, em que Jesus não está ferido, ensanguentado ou moribundo, surgindo sem coroa de espinhos ou pregos nas mãos e pés, descendo do infinito e olhando o mundo do alto do céu, com uma luz dourada iluminando o seu corpo. Um Cristo belo, vívido, anatomicamente perfeito e vivo, um Cristo Salvador, de Salvador Dalí, que queria que o seu Cristo tivesse mais alegria e beleza do que tudo quanto se tinha pintado até então. Onde há influências de leituras dos escritos dos místicos espiritualistas espanhóis São João da Cruz e Santa Teresa de Ávila. Incluindo um desenho de um Cristo de João da Cruz, embora crucificado.
Acusado de nas suas telas todas as mulheres terem o rosto de Gala, foi mais longe ao colocá-la no lugar de Cristo em O Sacramento da Última Ceia (1955). E no da mãe de Jesus na pintura A Madona de Port Lliglat.
Há quem veja nesta deriva pictórica o regresso a uma pintura de academia, raiando o virtuosismo, restaurando valores pictóricos do passado. Há quem vislumbre um derrube de todas as fronteiras e uma nova estrutura de pensar, não alheios ao surrealismo, atentos os seus efeitos transgressores em que o artista se libertou de convenções tidas como racionalmente usuais para se expressar. O real, se presente, é reforçado pela imaterialidade. A imaginação é sobrevalorizada, em desfavor da razão.
Há uma notória transgressão do universalmente aceite ao substituir-se Jesus por uma mulher no Sacramento da Última Ceia. Surreal, dir-se-á. Embora criativo e original. Há uma transgressão da versão convencionalmente aceite da imagética da crucificação, ao representar-se, à revelia do cânone tradicional, um Cristo não agonizante e não sofredor, nem martirizado, supliciado ou torturado. Um Cristo não convencional, em rebeldia com o senso comum, algo de surreal. Sem esquecer, nalgumas telas, o seu misticismo nuclear, numa mistura de real, irreal e detalhes surrealistas nas versões da Madona de Port Lligat.
Mesmo quando não se gosta, Dalí nunca nos deixa indiferentes, havendo que saber separar a arte em si do artista.
01.08.2017
Joaquim Miguel De Morgado Patrício