Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

AS ARTES E O PROCESSO CRIATIVO

 

XVII - SURREALISMO - IV

MAGRITTE, MAN RAY E OUTROS

              

O artista belga René Magritte é tido como um pintor surrealista cerebral e do absurdo, em que nada é exatamente o que parece. A representação é uma possibilidade ilimitada de significados. A arte funciona na base de uma saudável mentira. A representação artística é uma mentira com verosimilhança.  Em A Traição das Imagens (1929), tido como um ícone da arte moderna, a imagem é acompanhada pela inscrição Ceci n`est pas une pipe (Isto não é um cachimbo), sendo-nos dada uma representação de uma coisa e  não a sua realidade, dado que o cachimbo da tela não é verdadeiro e não pode ser usado para fumar. Há uma desconstrução da ilusão do real, remetendo a imagem para o que ela é. O que reconhecemos como a representação de um cachimbo, não é o que estamos a pensar, gerando-se um conflito de mensagens, uma vez que até à leitura da legenda o observador pensa tratar-se de um cachimbo. Na sua aparente simplicidade, remete-nos para um anúncio de publicidade, área que o autor dominava. Enfim, tudo não passa de uma ilusão, de um cachimbo de papel, explorando o surrealismo através da realidade, desafiando o observador a crer que está perante um cachimbo.

 

No quadro Golconde há homens imóveis vestidos com sobretudos e chapéus de coco chovendo do céu, parecendo gotas de chuva pesada ou balões flutuando, projetando a sua sombra quando se sobrepõem frente aos edifícios, tendo como fundo o azul do firmamento e prédios urbanos. Exibe de modo elementar o que há a mostrar, sem complicações cromáticas ou formais. Só que esses homens não são homens, apenas fotos deles. De novo a consciência da falsidade da representação. Na tela O Assassino Ameaçado há imagens misteriosas, macabras, perturbadoras, sinistras, ameaçadoras, banais, traumáticas, aparentemente reais e cada vez mais surreais quanto mais observamos, juntas de modo incongruente e inusitado no mesmo espaço, lembrando  influências de Giorgio De Chirico.

 

Nas sua obras nada é exatamente o que parece, havendo uma fusão consciente da realidade em ficção, jogando com o humor e o absurdo em situações inesperadas, numa interpretação da realidade à luz de uma imaginação paradoxal e cerebral, extrapolando o mundo onírico e os desejos do inatingível com a ajuda do mundo publicitário.

 

Os objetos têm também um lugar importante no surrealismo. Se Miró criou quadros-objetos e Dalí inventou objetos fantásticos, Man Ray descobriu as raiografias e a solarização, chegando a queimar objetos fotografando-os nas diferentes fases de combustão.

 

Desistindo da tinta e concentrando-se na fotografia, Man Ray transferiu a sua sensibilidade pictórica para o processo fotográfico, na tentativa de criar imagens com o brilho e poder da tinta. O que resultou numa técnica que apelidou de raiografia. Era uma fotografia feita sem câmara, fora da máquina fotográfica e no estúdio de revelação. Quando colocava um objeto, tipo lápis, caneta, tesoura, no papel e acendia a luz, imprimia-se uma versão negativa daquele na folha fotográfica preta sob a forma de uma folha branca. Era uma técnica de produzir imagens fantasmas, tipo raios X, a que chamou pintura com luz.

 

Descobriria acidentalmente outra técnica fotográfica inovadora: a solarização. A sua assistente, involuntariamente, acendeu a luz da câmara escura durante a revelação de fotografias. Man Ray angustiado, apagou a luz e mergulhou os negativos no fixador para os tentar salvar. Não os salvou, estragaram-se, de uma forma artística. Em todas as fotografias o modelo feminino começara a derreter dos lados, como um gelado ao sol, produzindo uma imagem onde o real se transforma num estado fantasioso, onírico. O Primado da Matéria sobre o Pensamento (1929) é um exemplo, em que em conjunto com o primado da matéria corporal definida, os limites da cabeça e duma parte do corpo da mulher se vão diluindo e tornando imprecisas por efeito de fusão da técnica de solarização, representando o pensamento aludido no título.  

 

Arp, por sua vez, apresenta em 1931 os seus papeis rasgados síntese da arte abstrata e do surrealismo. Dominguez propunha a decalcomania sem objeto preconcebido apoiando uma folha de papel sobre outra embebida em guache, criando paisagens enigmáticas. Paul Delvaux usa imagens oníricas em que jovens mulheres em hipnose deambulam por espaços intemporais e estranhos.

 

Outros nomes, nomeadamente no feminino, irão ser merecedores de atenção, como Méret Oppenheime, Frida Kahlo, Leonora Carrington, Louise Bourgeois e Dorothea Tanning.

 

Mas o espírito surrealista permaneceu até aos nossos dias, tendo vindo para ficar, apelidando-se de surrealista um artista ou vulgar cidadão se o rótulo for adequado. No cinema, mais recentemente, há nomes que recorreram (e recorrem) ao surrealismo para elaboração da sua narrativa visual, tantas vezes chocante e desconcertante. Exemplificam-no Hitchcock, Ingmar Bergman, Fellini, Wim Wenders, Jacques Prévert, Tim Burton, David Lynch, Terry Gilliam, David Cronenberg e Peter Greenaway.

 

O surrealismo surge em Portugal, a partir de 1936, com António Pedro e António Dacosta, expandindo-se e promovendo-se, desde 1947, com nomes como Mário Cesariny, Alexandre O`Neil, Vespeira, Fernando Azevedo, António Domingues, Cruzeiro Seixas, Carlos Calvet e José Augusto França. À tríade Deus-Pátria-Família, opunham Poesia-Amor-Liberdade.  

 

08.08.2017 
Joaquim Miguel De Morgado Patrício