AS ARTES E O PROCESSO CRIATIVO
XIX - CRISE E RUTURA DOS VALORES E CHOQUE DA GUERRA – I
No século XIX e até à primeira grande guerra, a Europa viveu um período eufórico de criatividade científica e intelectual, de inventos permanentes e sucessivos que faziam crer que o progresso estava intimamente ligado ao desenvolvimento científico. Desenvolveu-se o cientismo, corrente de pensamento de matriz positivista segundo a qual a resposta a todas as questões humanas estava na ciência, tida como superior a todos os outros meios de compreensão da realidade humana, como a filosofia, a metafísica, a política e a religião, dado o seu determinismo cognitivo e resultados práticos.
Mas a crença no sentimento de superioridade da razão e vontade humana, por oposição à resistência das forças da natureza, começou a declinar e a ficar ameaçada, no fim do século XIX, pelo próprio desenvolvimento científico das ciências. A sociologia, psicologia e psicanálise revelavam que o ser humano não é só conduzido pela razão, mas também por forças instintivas e naturais, onde impera o inconsciente. A biologia, a antropologia e a física demonstravam ser um ser natural como os demais e que as suas ações eram regidas pela natureza, o que conflituava com a ideia de liberdade e responsabilidade defendida pela moral estabelecida. Questionou-se o determinismo e a tentativa de aplicar os mesmos métodos das ciências naturais às restantes áreas do conhecimento.
Ante o derruimento de valores tradicionais, estes foram vistos como sendo tabus e preconceitos, pseudovalores de uma sociedade enganadora e falsa, apenas servindo para ferir e inibir a plena realização humana. Havia na ciência novos valores que revelavam novos caminhos, numa permanente experimentação de um sentimento de libertação e de uma nova ética assente na liberdade individual e realização total do indivíduo.
André Gide, em Les Nourritures Terrestres, no poema Nataniel, Eu Te Ensinarei o Ardor, proclama:
Mandamentos de Deus, magoaste a minha alma.
Mandamentos de Deus, sois dez ou vinte?
Até onde os vossos limites?
Ensinareis vós que há sempre mais coisas proibidas?
Novos castigos prometidos à sede de tudo quanto achei de belo na terra?
Mandamentos de Deus, tornastes a minha alma doente.
Envolvestes de muros as únicas águas que me dessedentavam…
… Foi por certo tenebrosa a minha juventude;
Disso me arrependo.
Não provei o sal da terra.
Nem o do grande mar salgado.
Julgava que era eu o sal da terra.
E tinha medo de perder o meu sabor.
O sal do mar não perde o seu sabor; mas os meus lábios estão velhos para o saborear. Ah, porque não respirei eu o ar marinho quando tinha na alma a avidez desse ar?
Que vinho conseguirá agora embriagar-me?
Ah! Nataniel, entrega-te à alegria enquanto ela sorri à tua alma - e satisfaz o desejo de amar enquanto os teus lábios estão belos ainda para beijar e o teu abraço é jubiloso.
Porque tu pensarás, tu dirás:
- Os frutos ali estavam; o seu peso já curvava, fatigava os ramos; - a minha boca ali estava e plena de desejo: mas continuou fechada e as minhas mãos não puderam estender-se porque estavam unidas em oração; - e a minha alma e a minha carne ficaram desesperadamente sequiosas. - Desesperadamente a hora passou.
O belicismo, a brutalidade e o choque da guerra agravaram angústias e interromperam esperanças e otimismos.
22.08.2017
Joaquim Miguel De Morgado Patrício