ATORES, ENCENADORES (LXIX)
HENRIQUE LOPES DE MENDONÇA ORIENTADOR DA CENA E DA INTERPRETAÇÃO
A preparação de uma edição de Teatro Escolhido de Henrique Lopes de Mendonça leva-me a questionar a potencialidade de espetáculo dos textos de teatro e a maior ou menor intervenção e orientação do próprio dramaturgo na respetiva realização cénica. Apetece então lembrar a fundação do teatro-espetáculo português, quando, em 7 de junho der 1502, um “pastor” penetra “aos arrepelões” e “à punhada” na Câmara onde a Infanta D. Maria, mulher de D. Manuel I dera á luz o futuro D. João III.
Sabemos que o “pastor” era Gil Vicente “trovador e mestre da balança” e o “Auto da Visitação” ou “Monólogo do Vaqueiro” formaliza um fundação do teatro português, peses embora os antecedentes já então concretizados por exemplo por Henrique da Mota, hoje esquecido. Isto, para dizer que qualquer texto de teatro tem necessariamente o potencial da sua realização de espetáculo, ou então não é teatro, é prosa ou poesia dialogada... Só que há dramaturgos que melhor ou pior alcançam e potenciam essa dimensão de espetáculo.
Vem tudo isto a propósito de um estudo que efetuei sobre o teatro de Henrique Lopes de Mendonça, autor da letra do Hino Nacional A Portuguesa. Oficial de Marinha escreveu mais de 30 textos dramáticos. E o que aqui nos prende agora a atenção é precisamente o sentido de espetáculo e a encenação potencial que muitos ou quase todos esses textos expressamente contêm.
Digamos que é habitual os autores completarem as falas de cada personagem com indicações, maiores ou menores, de cena, orientando assim, de certo modo, a potencialidade de cada interpretação/encenação. Como também é comum a descrição de cenários e ambientes cenográficos, muitas e muitas vezes introduzidos pelo dramaturgo, geralmente no início de cada ato. Mas em Lopes de Mendonça estamos perante textos de verdadeira orientação cénica correspondentes a cada personagem, a cada situação dramática. E é interessante, repita-se, encontra-los num dramaturgo que, pela sua formação (Oficial da Armada) e pela sua biografia, não era propriamente um homem de teatro-espetáculo
Essa formação e atividade profissional surge porem, não raro, subjacente e até evidente nas descrições de cena. Assim por exemplo, na descrição da nau Flor da Rosa da peça “Afonso de Albuquerque”:
“Trecho da tolda da nau Flor de la Rosa em viagem, vista quase longitudinalmente de estibordo, supondo-se o eixo do navio com a obliquidade de cerca de uns 30º sobre a linha do proscénio. À esquerda levanta-se o chapitéu, cuja parede anterior fecha a cena por esse lado. Sobre o chapitéu, varanda corrida, com escada aos dois bordos para a tolda, e mastro da mezena, cuja vela triangular se vê em parte, cortada pelas bambolinas”(…)
Mas agora compare-se esta descrição com a nota de cena do Ato I da peça “O Azebre”, esta passada em “Lisboa atualidade” (1909), onde se descreve a habitação e a vida miserável de um velho músico:
“Um sótão. Ao F. porta de entrada comunicando com a escada da qual se entrevê a grade do corrimão. À D. janela de água-furtada. À E. porta para a cozinha. Cómoda à E., abaixo da porta, tendo em cima um grande numero de musicas e alguns livros. Mesa um pouco à D. quase em frente da janela. Cama de ferro ao F., em desalinho, entre a porta e a E. da cena. Junto dela, um mocho alto com uma palmatória de folha e um livro. Quatro ou cinco cadeiras espalhadas pela cena. Toda a mobília ordinária e em mau estado”…
Este ambiente irá contrastar com o segundo ato, numa “sala de receção comunicando com um ou mais arcos com a sala de música ao F. Vê-se nesta um grande piano de cauda e uma harpa encapada. – Portas laterais. Uma janela à E. A. Mobília de aparato. – Lustres e candeeiros acesos”.
E o mesmo detalhe acompanha muitas vezes as próprias cenas e as intervenções dos personagens, em didascálias que traduzem um sentido de orientação de espetáculo e de interpretações. Importa aliás referir que “O Azebre” foi recusado pelo Teatro D. Amélia e Pelo Teatro D. Maria II por ser considerado “obsceno”. E só subiria á cena em 1909, no então Teatro do Príncipe Real, com atores que, mesmo na época, nem todos eram de primeiro plano: mas que tinham no elenco também grandes nomes: desde logo Ferreira da Silva no protagonista, mas também, nos papéis principais, Teodoro Santos, Luciano de Castro, Amélia Ramos, Zulmira Ramos, Maria Falcão, Adélia Pereira. (cfr. “Teatro Naturalista” de Luís Francisco Rebello, INCM 2013).
Mas outras peças de Henrique Lopes de Mendonça merecem atenção no ponto de vista do espetáculo. Veja-se, como mais um mero exemplo, esta nota de cena ´da peça “O Salto Mortal”, envolvendo as duas protagonistas, Luísa e Doroteia: “Luiza tem ido buscar os objetos pedidos. Apenas volta com eles, Doroteia começa a fazer a cama sobre a arca, podo primeiro a esteira em guisa de enxerga, e por cima o cobertor e o colchão. Tudo é feito durante as falas seguintes, conforme se vai deduzindo do diálogo”. É uma verdadeira orientação de dramaturgo-encenador!
Ora bem: este sentido do espetáculo marca profundamente o teatro de Henrique Lopes de Mendonça. E torna mais evidentes as opções cénicas e interpretativas, da parte de atores e encenadores, como da parte de cenógrafos e técnicos de espetáculo que, de uma forma ou de outra, o interpretam e fazem-no atual. Pois, como escreveu, e bem, Luciana Stegagno Pichio, que aliás põe algumas reservas a esta dramaturgia, as suas peças refletem “rigor documental na pintura dos ambientes e costumes“ e “preocupação de verosimilhança que denuncia a influência da nova estética verista” (in “História do Teatro Português” - trad. port.- pag.279).
E esse sentido de espetáculo justifica a referência, pelo conteúdo dramático dos textos, mas também pela orientação que expressamente consagra relativamente aos atores e aos encenadores: e os exemplos podem multiplicar-se, na vasta obra “ teórica e prática” de Henrique Lopes de Mendonça!
DUARTE IVO CRUZ