ATORES, ENCENADORES - XLIV
ALMADA NEGREIROS E O TEATRO-ESPETÁCULO:
NOS 100 ANOS DO “MANIFESTO ANTI-DANTAS” E NOS 70 ANOS DA PALESTRA “O CINEMA É UMA COISA E O TEATRO É OUTRA”
Almada autor dramático e Almada ator têm sido amplamente referidos nas diversas séries de artigos aqui publicadas. Mas a coincidência celebrativa dos dois textos que agora evoco, a saber, os 100 anos do “Manifesto Anti-Dantas e por Extenso” (1915) e os 70 anos da palestra sobre as diferenciações estéticas e mesmo económicas entre o teatro e o cinema, justifica, certamente esta análise. Nesses textos, a crítica expressa ou implícita abrange o espetáculo – teatro ou cinema – das épocas respetivas: e é interessante ver como Almada assume, em textos diferentes no espirito e no estilo, separados entre si por 30 anos, e separados de hoje por 100 e 70 anos, posições que mantêm atualidade na perspetiva do espetáculo - logo, de atores e encenadores/realizadores.
E desde logo é interessante recordar que o “Manifesto Anti-Dantas” decorre da estreia de uma das peças históricas de Júlio Dantas, concretamente a “Soror Mariana”, evocação ainda muito próxima do ultra-romantismo histórico-dramático de Mariana Alcoforado. A análise é ao texto e ao espetáculo e atinge uma virulência arrasadora mas simultaneamente irónica. Só um exemplo:
“Ouve-se uma corneta tocar uma marcha de clarins e Mariana sentindo na patas dos cavalos toda a alma do seu preferido foi qual pardalito engaiolado a correr até às grades a gritar desalmadamente pelo seu Noel. Grita, assobia e redopia e cai de costas com um acidente (…) o pano cai e o espetador também cai da paciência abaixo”…
E assim segue o Manifesto, numa tremenda e “espetacular” diatribe contra o autor da peça, contra o que ele na época - e hoje!... - representava de academismo e contra o meio teatral então dominante. Repare-se a esse propósito que 1915 é também o ano do Orpheu.
Ora, o “Manifesto” contem, como bem sabemos uma visão global sobretudo da obra de Júlio Dantas sem dúvida, mas também expressamente, da literatura “oficial” da época, aí incluindo os dramaturgos, mesmo então jovens e em início da carreira: além do Dantas, Almada refere também, no plano especificamente dramatúrgico, “as pinoquices de Vasco Mendonça Alves passadas no tempo da avozinha (...) as infelicidades de Ramada Curto (…) as gaitadas do Brun”(…) “E os atores de todos os teatros!”...
E vai por aí fora, com bem sabemos…
E isto, insista-se, no ano do “Orpheu”: mas reconheça-se também que os dramaturgos que surgem ligados ao movimento, no que respeita às expressões teatrais, ficam aquém da modernidade das obras respetivas e da força renovadores do movimento: mesmo Sá Carneiro, para não falar em Cortes Rodrigues, ou Raul Leal… e o próprio Fernando Pessoa nos estratos teatrais que ao longo de décadas se foram conhecendo. O único verdadeiro dramaturgo modernista é de facto Almada.
E vem a propósito dizer que, por esta época, Almada dirigiu e atuou nos históricos espetáculos nos jardins de Helena Castelo Melhor, com música de Rui Coelho e cenários de José Pacheco. Aliás, a ligação de Almada Negreiros ao teatro-espetáculo prosseguiu ao longo da sua carreira, como autor mas também como cenógrafo e figurinista, tal como já tenho registado. Vejam-se ainda os desenhos na edição do “Nome de Guerra”: e recordo o testemunho direto de Fernando Amado, que me referiu a presença quase diária de Almada nos ensaios e espetáculos da peça.
Aliás, esse sentido de espetáculo surge também nas notas de cenas e nas didascálias das peças, designadamente no “Nome de Guerra”, onde a orientação expressa destinada aos atores, ao encenador e ao cenógrafo marcam sobremaneira o texto, e completam os projetos de cenário e as ilustrações da edição (Verbo - 1959), da autoria do próprio Almada. Como é por ele assinado também o grafismo singelo de “1+1=1”.
Mas voltemos agora a 1935. Nesse ano, como vimos, Almada profere uma palestra intitulada “O Cinema é uma Coisa e o Teatro é Outra”. E vamos buscar a esse texto, posteriormente publicado, uma teoria geral da arte do teatro que fala por si mesma: é uma reflexão admirável da estética dimensionada na vertente de texto e de espetáculo, ou melhor, de texto potencial do espetáculo, como o verdadeiro teatro é.
Diz então Almada:
“É efetivamente no Teatro que se reúnem todas as outras artes. Entendamos bem: não é o Teatro que as reúne, elas é que se reúnem no Teatro. É o Teatro uma disciplina individual como qualquer outra das Belas – Artes e das Belas-Letras, para os autores de teatro e todos quantos vivam a arte cénica: porem o espetáculo de teatro, cara a cara com o público, é a única pedra de toque entre a arte e o povo. (…) A arte do teatro é o final de uma colaboração em espirito de todos os artistas de uma época (…) O próprio autor de teatro é de todos o que mais frequenta todos os outros autores”.
E termino com a citação de um recentíssimo texto de Maria José Almada Negreiros que refere precisamente as relações de Almada com o Grupo do “Orpheu”, cujo centenário também celebramos:
“No grupo do Orpheu havia uma coisa muito única: depois dos encontros diários cada um ia à sua vida. A de Fernando Pessoa pode facilmente imaginar-se; a de Santa Rita já nem tanto, a de Amadeo desconhecemo-la e a de Sá Carneiro também. Quanto à vida de Almada, havia umas vagas descrições relacionadas com a aventura do Orpheu. Mas tinha outra vida quase tão forte como esta. Como vasos comunicantes, alimentavam-se sem se conhecerem”. (in “Identificar Almada”, ed. Assírio e Alvim - Setembro 2015)
DUARTE IVO CRUZ