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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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BICHOS, PLANTAS, CASAS E PESSOAS

  


Quando o ano estava a terminar a Maria José partiu. Para todos era a Adília Lopes, referência fundamental da poesia contemporânea. O tempo foi-nos aproximando e não esqueço o que Ilda David me disse há dias sobre não ter havido tempo para uma dedicatória no último volume da “Dobra” (Assírio e Alvim, 2024), que eu receberia, como sempre, com muita alegria. Mas por certo ela já a fez, entretanto… Era uma grande amiga, com uma presença inconfundível de afeto e atenção. Minha prima, encontrámo-nos naturalmente no culto da memória dos nossos ancestrais, a Rua José Estêvão era a referência. E regresso sempre à sua literatura com um misto de júbilo e de saudade.

O Cardeal José Tolentino Mendonça, na sentida homilia que proferiu na Capela do Rato quando fomos despedir-nos dela, recordou três coisas, que disse guardar no seu coração – a capacidade de contemplar, com uma extraordinária inteligência do coração; a procura de transformar a solidão em comunhão com os outros, em sentido comunitário; e a fé, que a levava a dizer “há milagres, não há truques”.  A sua obra multifacetada é de uma extraordinária originalidade e irrepetível. Aí se notam os ecos de Sophia de Mello Breyner, de Ruy Belo, e de Nuno Bragança. Escolheu como divisa o pouco de S. Francisco de Assis, como explicou a propósito em “A Mulher-a-dias”, que do pouco quis o pouco, num elogio da frugalidade e da sobriedade com que o “poverello” sempre  viveu. Como recordou o Presidente da República na Mensagem de fim de ano, ela foi um modelo de cuidado e de atenção, porque “nunca, nunca perdeu nada, nem deitou nada fora ao longo da sua vida” – e assim foi exemplo para que guardemos seguramente a nossa memória coletiva de séculos.

Iconoclasta, desconcertante, inesperada, doce e amarga, o seu lugar é insubstituível. A sua escrita inconfundível ficará na lembrança futura. A verdade é que, ao longo da sua obra poética sentimos uma permanente exigência, da busca da palavra certa, em que a imaginação e a lucidez se ligam intimamente num objetivo determinado em que o non sense surge de um modo ponderado como ilustração e compreensão da realidade. Ver o mundo às avessas era assim procurar melhor vê-lo, como num casaco de malha, quando parecia faltar-lhe uma casa para o botão, sendo o motivo estar mal abotoado… E lembramos do gosto que partilhava com José Blanc de Portugal, seu padrinho, ao ler os “Disparates do Mundo” de Chesterton, que este maravilhosamente traduziu. Por isso, Adília tinha preocupação de ver o mundo sob o ponto de vista atípico e aparentemente cómico ou até chocante, para que se compreendesse melhor a singularidade do que deve ser dito. E lembramo-nos de Paula Rego, ilustradora da Obra de Adília. “Os seus textos fizeram-me logo lembrar a minha juventude, com as criadas, as bonecas, as mães ultra-protetoras. Ela é de um grande romantismo e ao mesmo tempo de um grotesco e de um cómico transbordantes”. Não é assim demais pôr lado a lado Paula Rego e Adília Lopes. E o que é ser sempre criança como ela foi? É fazer da memória uma atenção permanente. “Memória-puzzle”. É não esquecer. É pôr os brinquedos na mesa redonda para falarem. E é compreender a magia do escorrega – uma bela comparação para pensar e escrever. Sempre um fundo de ironia, para compreender o essencial: “Os computadores são estúpidos. Só fazem aquilo para que foram programados. As árvores os gatos as casas velhas são inteligentes”.


GOM