CADA ROCA COM SEU FUSO…
FOLHEANDO REVISTAS ANTIGAS DE QUADRADINHOS…
25 de junho de 2019
Dei-me numa tarde destas, em que o Verão foi fazendo caretas, a folhear revistas antigas da minha coleção do jornal “Tintin” belga. Para os mais novos, recordo que a minha geração do “Cavaleiro Andante” (que já não apanhou diretamente o “Tintin” português de Dinis Machado e Vasco Granja, e que tomou contacto como Corto Maltese já numa adolescência avançada) teve uma especial ligação ao “Tintin” belga e à Escola de Bruxelas. Lembro, por isso, longos debates no Pedro Nunes sobre o que líamos e sobre quais os nossos autores preferidos. Na idade em que estávamos havia dúvidas – se é verdade que Hergé era indiscutível, o certo é que a sua riquíssima equipa dava-nos pano para mangas para dizermos de nossa justiça sobre aquilo que mais ou menos nos enchia as medidas. Nestas incursões de agora comecei por voltar a admirar os impecáveis desenhos das indumentárias militares, dos estandartes e das histórias seiscentistas de Liliane (1927-2015) e Fred Funcken (1921-2013). Comecei por aí e deleitei-me. Voltei a ler tudo… Os dois colaboraram no “Spirou” e no “Tintin” e deram vida ao Capitan de Castaignac (a partir de 1963), um gascão tornado agente secreto ao serviço do Cardeal Richelieu (e nós gostávamos de 1640 e do Cardeal pouco amado por Dumas). E também é deles Doc Silver (1967) um médico americano de óculos com aros redondos num “western” deveras atípico, com argumento de Yves Duval (1934-2009). E se falo de Duval, devo lembrar os muitos argumentos que escreveu, além de alguns do Capitan, sobretudo os Franval com desenhos de Edouard Aidans (1930-2018) – destacando-se a célebre aventura “Destination Desertas”, passada nos Açores. Duval fez também os argumentos de Howard Flynn (1964), o jovem oficial da marinha real britânica, com desenho de William Vance (1935-2018). E sem perder o fio desta notabilíssima meada, Vance foi dos mais fecundos autores da nossa predileção – dele são Ringo, a continuação de Bob Morane (depois de Gérald Morton o ter deixado), o importante Bruno Brazil (com argumento de Greg, sob o pseudónimo de Louis-Albert), e o famosíssimo “XIII”, com argumento de Jean Van Hamme (1939) – chegado aos nossos dias. Ainda no elenco do casal Funken não posso esquecer “Le Chevalier Blanc” (“Sans Peur et Sans Reproche”, 1954) e “Les Belles Histoires de l’Oncle Paul” (1951). As histórias verdadeiras tinham uma predileção especial – e assim vencemos os nossos professores renitentes. Se repararmos bem nesta lista encontrámos uma boa parte da equipa que Hergé constituiu graças ao investimento e à coragem inovadora de Raymond Leblanc (1915-2008), editor de “Tintin” a partir de 1946 e responsável pelo desenvolvimento da “linha clara”. E se falei de Greg (1931-1999), Michel Louis Albert Regnier, devo dizer que ele foi um dos mais prolíficos e influentes criadores das escolas belgas. É impressionante a lista das suas personagens – que se devem antes de tudo à influência, cumplicidade e amizade de André Franquin (1924-1997). Franquin é um nome grande ligado a Spirou, Fantasio e Marsupilami, a Gaston Lagaffe ou a Modeste et Pompon (os nossos Lolocas e Pompom)… Greg colaborou em centenas de pranchas, designadamente de Modeste e de Spirou. Com Lolocas Greg foi assim uma presença muito antiga do “Cavaleiro Andante”. De 1958 ao início dos anos oitenta, Greg foi argumentista com os principais desenhadores da linha clara: Tibet (1931-2010), Maréchal (1922-2008), Mittéï (1932-2001), Paul Cuvelier (1923-1978), Hermann (1938), Eddy Paape (1920-2012), Dany (1943), Jo-El Azara (1937), Turk (1947), Bob de Groot (1941), Claude Auclair (1943-1990), Aidans, Derib (1944), Fahrer (1939) ou Dupa (1945-2000). Está aqui a fina-flor! Jo-El Azara é o criador do impagável Taka Takata e fez renascer o Coronel Clifton, e quanto a Dupa, temos o extraordinário Cubitus, o cão felpudo que se tornou um ícone. Greg foi autor de mais de 250 álbuns: a lista é impressionante e fala por si. Zig, Puce e Alfredo criados em 1925 por Alain Saint-Ogan renasceram com Greg, mas o caso de Achille Talon merece nota especial. Este apareceu em 1963 no jornal “Pilote” e René Goscinny (o inventor de Astérix, de Iznogoud e do Petit Nicolas, e argumentista de Lucky Luke com Morris – 1923-2001) saudou assim a aparição da nova personagem: “Achille Talon n’en a cure; sûr de lui, il n’hésite jamais à se jeter à corps perdu dans les situations les plus difficiles, avec une remarquable inefficacité”. Que melhor definição poderia ser feita de um herói dos quadradinhos? Misto de realidade e de sonho, motivo de reflexão e de riso, motivo para não nos levarmos demasiado a sério… Não vou esgotar hoje este meu folhear de páginas antigas. Já está tudo espalhado no chão. Que fantástico mar de desenho e de tinta… A maior parte dos autores referidos já não está entre nós, mas a sua memória está bem viva. E se pertenço ao clan “Tintin” não esqueço (porque líamos tudo) as influências do jornal “Spirou” (1938) e da célebre Escola de Marcinelle, com Rob-Vel (1909-1991) e Jijé (1914-1980), além de Franquin… Aí encontramos Peyo (1928-1992) criador dos Estrumpfes (Smurfs) e Johan e Pirlouit; Roger Leloup (1933); Roba (1930-2006) autor de Boule et Bill… Lembre-se que Jijé foi o artífice de Blondin et Cirage, Jean Valhardi e Jerry Spring. Também “Pilote” (1958) não nos passou despercebido, com René Goscinny (1926-1977) e Uderzo (1927) e a genial aparição de Astérix – que conhecemos através do efémero “Foguetão” de Adolfo Simões Müller… Com “Pilote” encontrámos ainda Barbe-Rouge de Jean-Michel Charlier (1924-1989) e Victor Hubinon (1924-1979), Blueberry criado também por Jean-Michel Charlier com Jean Giraud “Moebius” (1938-2012), Valérian e Laureline de Pierre Christin (1938) e Jean-Claude Mezières (1938) e Tanguy e Laverdure de Charlier e Uderzo. Os nomes e o traço são inconfundíveis… Sopravam novos ventos e novos temas, designadamente a ficção científica. Aí pudemos começar a encontrar Corto Maltese de Hugo Pratt (1927-1995) que estava na transição temática entre a adolescência e a idade adulta, mas também Enki Bilal (1945) que conheceu Goscinny aos 14 anos e publica a primeira história, “Le Bol Maudit”, em 1972, passando depois a colaborar com Pierre Christin… As escolas belgas levavam-nos aos italianos – como tínhamos vindo das bandas norte-americanas ou dos “Sobrinhos do Capitão”… Por hoje, fico-me por aqui até à próxima crónica, onde falarei de Blake e Mortimer e de Edgar P. Jacobs (1904-1987), a propósito na nova e surpreendente criação de Schuiten, Van Dormael, Gunzig e Durieux, “Le Dernier Pharaon”. Mas não esquecerei Jacques Martin (1921-2010), que durante quase vinte anos acompanhou a feitura dos álbuns de Tintin, ao lado de Hergé, célebre pela criação de Alix (1948) e Lefranc (1952), nem A.P. Duchateau (1925), romancista policial, argumentista de Ric Hochet com desenho de Tibet, nem Jean Graton (1923), exímio desenhador e argumentista do automobilismo e desportos motorizados, criador de Michel Vaillant… No caso de Graton três obras têm a ver connosco portugueses: “Rali em Portugal” (1971), “O Homem de Lisboa” (1984) e “Febre de Bercy” (1988) pela participação de Pedro Lamy. A título de curiosidade e a lembrar-me do Major Jaime Eduardo de Cook e Alvega (que num concurso de cultura geral alguém confundiu com um herói histórico), lembro que no tempo em que deveriam dar-se nomes portugueses aos heróis das HQ Ric Hochet era Mário João e Miguel Vaillant, Miguel Gusmão… Conhecemos mil exemplos sempre caricatos…
E como escolho sempre um poema – hoje também não falta:
«Estudo para Banda Desenhada»
De António Barahona
“Em Banda desenhada, tão depressa
Treparam à colina onde corria
Um bando de crianças à gandaia
Em redor duma casa arruinada,
Tão depressa, em banda de surpresa,
Que ganharam tal medo na subida
Lentamente assombrados por medida
De Deus, que mede os sustos sem ter pressa.
Depressa mais depressa: segredava
A rapariga atlética ao poeta
no balão da legenda: as crianças
aos gritos, entretanto param a corrida:
emudecem ao ver o som e as danças
do casamento alquímico das sombras”
De “Raspar o fundo da Gaveta e Enfunar uma gávea (2011).
Agostinho de Morais