CADA ROCA COM SEU FUSO…
A VER A CRISE PELAS COSTAS?
Não sei que vos diga. Há sinais contraditórios. É verdade que a crise pandémica como situação assimétrica vai ultrapassando, pelo menos aparentemente, a sua expressão mais dramática. Mas a primeira lição que poderemos tirar, é que deixamos de poder estar descansados. A cada passo pode surgir um qualquer morcego e com ele um vírus traiçoeiro e tudo pode começar de novo, mesmo sem falar das hipóteses de segundas e terceiras vagas. Há dias, lendo o testemunho de um médico atingido pela Covid-19, verifiquei duas coisas: a primeira é que qualquer atraso pode ter consequências fatais (como aconteceu em Itália e Espanha), a segunda é que ninguém está imune à fatalidade. O vírus ataca todos, ainda que, democraticamente, escolha aleatoriamente uns mais do que outros. Tanto podemos ter os assintomáticos (que alegremente transmitem a enfermidade), como os ligeiros e ainda os severos – que de um dia para o outro, mesmo fazendo-se fortes são prostrados com violência e vêem-se na iminência de passar para a eternidade. Se no auge da pandemia e do confinamento, havia vozes que prometiam tudo ir mudar – depressa percebemos que “de boas intenções, está o inferno bem cheio”… Agora, subitamente, depois do desconfinamento e perante uma aberturazinha, eis-nos diante da ideia imprudentíssima de que tudo já passou e de que temos um escudo protetor contra os vários perigos que nos imuniza. Puro engano! Os riscos mantêm-se, talvez atenuados, mas a redução do perigo só acontecerá se mantivermos as medidas protetoras – máscaras, distâncias, prevenção constante… E sobretudo prudência. Ninguém está imune, em nenhuma idade – a peste continua a pairar. Como li algures na imprensa italiana, pela boca de Walter Veltroni: “a nova fase significa trabalho. Significa reconstruir as condições de uma nova fase de desenvolvimento, fundada no ambiente, no saber, nas infraestruturas materiais e na digitalização. Significa que, acabada a emergência mais grave, os fundos que gastaremos não devem ser uma nova página de assistencialismo de massa, mas um fluxo de recursos guiado por uma visão estratégica e moderna de uma nova realidade que haverá de nascer desta crise”. Seria o melhor se assim fosse, mas temo que tudo fique na mesma… Senão vejam três ou quatro coisas: Deixámos de fazer o que era menos essencial, mas ninguém deu pela falta; fomos obrigados a encontrar solução para o que não podia deixar de ser feito; reduzimos o desperdício e a poluição – mas é verdade que houve coisas essenciais que ficaram por fazer. O quê? O serviço e o cuidado dos outros exigiam esforços adicionais, que ficaram aquém do desejável. E houve mortos. O medo ocupou excessivamente as nossas vidas. Muitas lições da peste ficaram por tirar. Por isso, Veltroni tem razão. As desigualdades agravaram-se e os mais fracos foram os mais prejudicados. Eis por que tem de haver aprendizagem e temos de encontrar novas formas de estar próximos do próximo, mesmo com a prudente distância. Não há aprendizagem sem proximidade. A distância é sempre um recurso excecional e transitório. Não resisto a citar um livrinho que escrevi há já bastantes anos e que tinha o título algo esotérico “Para o Estudo do Paradoxo de Zenão – Aquiles e a Tartaruga”: “Ora vejam bem a dificuldade que o mestre grego teve em explicar aos seus peripatéticos discípulos que logicamente nunca Aquiles poderia vencer a pobre tartaruga. Todos responderam em uníssono que só um passo de Aquiles permitiria ultrapassar a pachorrenta tartaruga e que, nem o povo se deixaria enganar por essa patranha, uma vez que a fábula de Fedro permitia que a Tartaruga vencesse a Lebre, porque esta se deixou dormir, tão segura estava de que iria vencer sem a mais breve das dificuldades. Distingamos assim as coisas: a tartaruga venceu a lebre realmente, porque esta mandriou, não podendo esquecer-se que só alcança em porfia. Também têm razão os alunos zombadores quando usam o senso comum para dizer que a passada de Aquiles é muito maior do que os movimentos da tartaruga. Mas agora vem o segredo maior. É que Zenão também tinha razão – porque a pergunta dele partia de um se. Se nós compararmos logicamente a caminhada da tartaruga e os passos de Aquiles para atingirem a meta, dividindo sucessivamente por dois o que falta para atingir o objetivo, nenhum dos dois vai atingir a meta, ou seja, nenhum vai vencer, por que as operações para os dois percursos são infinitas. E a verdade é que são mesmo. Tal passa-se também com a flecha que nunca chegará ao alvo se (e só se) nós formos sucessivamente dividindo por dois a distância que nos falta até ao destino. Tem razão Fedro, têm razão os meninos zombadores e tem razão o matemático. Não podem misturar-se as coisas. Afinal, a lógica reserva-nos grandes surpresas. Se a lógica da fábula prevalecer, se o senso comum dos jovens dominar ou se o problema de Zenão for compreendido tudo está certo. Alguém pode provar que existe o luzeiro que avista na noite limpa de Verão no firmamento? Não só não pode, como pode já não existir esse luzeiro há milhões de anos. O que há é uma ilusão ditada pela lentidão da velocidade da luz. E no entanto a luz vê-se, apesar de há muito estar apagada. O mesmo no confronto entre Aquiles e a tartaruga. Não estamos a perguntar se Aquiles vence, mas se algum dos dois pode atingir o destino se procedermos à operação lógica que Zenão nos propôs”. E eis-nos chegados ao meu ponto de agora. Nesta crise paradoxal, temos de compreender que nada vai ser como até aqui. Julgávamos que a penicilina e as vacinas conhecidas nos protegiam contra todas as ameaças. No entanto, regressámos aos tempos da Peste, porque um vírus migrou de um morcego para o bicho homem – o que não era suposto. Mas aconteceu. Tudo era mais simples se o vírus ficasse sossegado no morcego. Como tudo seria mais simples se Zenão nos estivesse a falar do senso comum e do que é normal. Mas o vírus fugiu do morcego e Zenão fez-nos analisar o confronto de Aquiles e da Tartaruga em duas operações da lógica abstrata… Na imagem que apresento Corto Maltese pensa no que pode vir a acontecer. Ninguém sabe. Eis-nos, pois, a pensar na incerteza e a tomar consciência de que até a natureza que nos rodeia pode ser destruída pela nossa estupidez…
Agostinho de Morais