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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CARTA A CAMILO

 

Cartas Derradeiras de Camilo Maria de Sarolea - II
(publicado aqui)

 

Amigo Camilo,

 

Obrigada! Fez-me tão bem ler a sua carta de hoje! Precisava muito que hoje um canivete em mãos e pensares hábeis esculpisse em palavras algumas das peças do meu xadrez, trazendo a dialética certeira à essência de um jogo de desiguais virtudes.

 

outra consciência não posso ter do que a da minha própria pequenez.

 

Esta uma das obstinações mais claras que nos pode acudir e acudir em lances tranquilos e de cheque mate, contudo. E chega um doce pólen de partida que entrego às brisas antes mesmo do tempo em que julgava ir sentir mestria preparada à partida, àquela partida que teria idade conformada.

 

A morte é silêncio e é lembrança, como a vida antes de si.

 

Sim, é assim que vejo a vida contida no ovo que a contém. Um ovo no chão que o faz sofrer quebraduras múltiplas. Vejo a vida, por vezes, como criatura mais inconformada nas formas do que nas inações e ainda assim a morte da vida oferece-lhe lembrança e silêncio, num ramo de ternos sorrires como se merecêssemos por termos sido aves sempre atentas ao mundo aberto.

 

Talvez por ser humano, o único ser capaz de viver e sobreviver fora da sua circunstância. Creio que a razão pela qual tanto e tantas vezes nos revoltamos é sermos paradoxo, o nosso próprio paradoxo.

 

Penso que viver fora da minha circunstância é deixar-me surdir para o maravilhamento da vida e é também, com ou sem dor, antecipar a surpresa e que isto tenha muito de ingénuo e muito de bisonho, diria, de modo a que se alguma coisa entendi do princípio dos tempos, tenha sido o não estranhar o paradoxo que sou numa mesmidade, em solidão. Depois, resta-me dar a mão à outra dentro de mim e lá vou acedendo à presença.

 

Afinal, "surfando" ondas hodiernas, não fará sentido perguntar se a fé é uma questão genética?

 

Sempre poderão surgir poderes de interpretação insuspeitados. Novas formas de navegar nos enigmas ao encontro do Espírito-cerne, aquele único que é uma incitação ao prosseguir no virar das folhas do papel-bíblia, afinal ele mesmo aventura de vida. O périplo, Camilo, na parte que hoje li do seu texto, tem o segredo de não nos deixarmos captados como presas sem que desse facto tenhamos consciência. Então pois que consigamos “surfar! já que tudo se vai reduzir a caminho já feito, a pormenores, a eternidades e coisas fugazes e afogadas em bips elétrónicos. Todavia a genética é viagem também; é embrião que não carece de sextante para se explicar de onde e para onde.

 

Camilo, que as suas palavras que cito em itálico me surgiram mais como lianas que muito sustêm os tombares, aqui, e ora ali, surdos e acantonados para que a maioria os não veja. E afinal pouco mais sei que na floresta a voz humana é tão só murmúrio. Os segredos dão a volta a si próprios de onde todas as transcendências parecem provir.

 

Devemos correr o risco de ter medo, tal como se arrisca a vida, eis que em tal risco se reconhece a coragem. Nicolas Diat não deixa de citar este dito

 

Gostava que não se tivesse medo de perder a consistência, a quase identidade que também escorre na berma dos dias que por último se suportam. Todavia, não creio que possamos ir mais longe do que um tecer conjunto, entre linha chamada de coragem e linha inclemente cor de chumbo.

 

Enfim, resta-nos sempre a grande e compacta toalha do mar. Essa que acompanha o seu passeio em Cascais e que o fita. Mas saiba que também já vi uma lua mutilada, um traço de morte, fiel, afinal, aos vícios da vida, um pescoço altivo, uma demora na possessão e tudo ainda assim me tem ajudado à compreensão, alertando-me o quanto esta não tem fim.

 

Sua amiga
Teresa

 

Teresa Bracinha Vieira