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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CARTA NOVA A JOSÉ SARAMAGO


Meu Caro José Saramago:


   Nas minhas Cartas a José Saramago, todas publicadas, há uns anos (2013/14), no blogue do Centro Nacional de Cultura, nunca me debrucei sobre o Memorial do Convento, obra que sempre me falou menos do que outros escritos seus, com que dialoguei naqueles tempos... Dias atrás, todavia, resolvi pegar nesse livro de 1982, em edição donde não se apagara ainda a dedicatória do autor a Isabel da Nóbrega: À Isabel, porque nada perde ou repete, porque tudo cria e renova. Bonito dito, quase bíblico, deveria ter sido guardado pela mesma verdade que tão sinceramente o inspirou.


   Mas deixo o desabafo sozinho, ou talvez não. Acompanho-o de uma mais longa citação do próprio romance, quando o padre Bartolomeu Lourenço, em trabalhos de passarola, diz ao mutilado soldado Baltasar, conhecido pelo cognome de Sete-Sóis:


   «...maneta é Deus, e fez o universo».


   Baltasar recuou assustado, persignou-se rapidamente, como que para não dar tempo ao diabo de concluir as suas obras, Que está a dizer, padre Bartolomeu Lourenço, onde é que se escreveu que Deus é maneta, Ninguém escreveu, não está escrito, só eu digo que Deus não tem a mão esquerda, porque é à sua direita, à sua mão direita, que se sentam os eleitos, não se fala nunca da mão esquerda de Deus, nem as Sagradas Escrituras, nem os Doutores da Igreja, à esquerda de Deus não se senta ninguém, é o vazio, o nada, a ausência, portanto Deus é maneta. Respirou fundo o padre, e concluiu, Da mão esquerda. 


   
Se estivesse agora a escrever-lhe, José Saramago, mais uma das minhas cartas intemporais (se fossem suas, seriam póstumas), dir-lhe-ia que, de Deus, nada sabemos, nem de direita, nem de esquerda. Todavia, por muitas e variadas imagens do Inferno que o engenho humano construa, nenhuma me parece tão verosímil como esta: à esquerda de Deus não se senta ninguém, é o vazio, o nada, a ausência. Isso mesmo: o Inferno é a ausência de Deus. Tão somente bastante. É evidente que outras representações, como as de sofrimento eterno ou de infinita tortura, tantas vezes resultantes de uma intenção de castigo vindicativo, nascem de visões antropomórficas do ser divino: os humanos - uns mais, outros menos - são propensos a gostar do espetáculo, ainda que só imaginário, do padecer alheio. Vá lá a gente perceber porquê, somos tentados a ser assim, até a própria Igreja - Santa Madre Igreja - consentiu e fomentou o Santo Ofício, a Santa Inquisição, o Santo Temor de Deus, do Rex Tremendae Majestatis, Senhor absoluto do Dies Irae. Parte importante da pedagogia cristã e do que se entende por Magistério da Igreja se fez incutindo o medo, o horror às profundas do Inferno, este surgindo como lugar de sevícias infligidas aos humanos pecadores por diabos a soldo do Deus castigador... A abundante iconografia é esclarecedora da insistência sadomasoquista nas misérias diabólicas do Inferno.


   Ora, com exceção de alguns poucos episódios (como a expulsão dos vendilhões do templo), os evangelhos não recorrem ao castigo como indispensável coadjutor da conduta moral, antes apelam à vocação libertadora da conversão para abrir a via de ultrapassagem do pecado - pecado que é a nossa teimosa paixão de nos confinarmos nos nossos próprios limites - e nos levar à descoberta da vida nova. Vai em paz e não voltes a pecar. Curiosamente, os pecados referidos, tais são conforme a lei mosaica, Jesus não cria qualquer catálogo de pecados novos (como a igreja clerical mais tarde o fará, remoendo sobretudo, e misoginamente, práticas sexuais), apenas ensina que o bem e o mal se cozinham no pensarsentir dos seres humanos, e é de cada um de nós que, bem ou mal, têm voz de saída. O único mandamento novo é o do amor fraterno, para que a nossa alegria seja completa. E quando nos chama a atenção para a escuta dos sinais dos tempos, e de Deus, conta a parábola do rico que desprezava o pobre Lázaro em vida, e que ,depois de morto, sufocado de sede no Inferno, pediu autorização para poder avisar seu irmão de que não deveria proceder como ele próprio, pois correria risco de castigo grande... É-lhe negado tal alívio : quem não escuta em vida a voz de Deus, nas vozes tantas que a vida nos traz, não saberá arrepender-se depois de morto. Nosso é só o tempo desta vida.  


   Ao afirmá-lo ocorre-me outro passo do Memorial, páginas adiante do já citado: Não é verdade que a mão esquerda não faça falta. Se Deus pode viver sem ela, é porque é Deus, um homem precisa das duas mãos, uma mão lava a outra, as duas lavam o rosto... Leio-o metaforicamente, Saramago toca aí em algo que as nossas ânsias de representação antropomórfica de Deus - teimamos em recriá-Lo à nossa imagem e semelhança - nos escondem: o Deus Vivo, não tem morte nem qualquer limitação, é simplesmente o Quem é, o Ser por si, alheio ao espaço e ao tempo. Nós, pelo contrário, somos contingentes, medimos o espaço que nos é alocado, contamos a vida e o tempo, organizamos a nossa mente e suas visões (é isso a cultura), moralizamos e legiferamos também, para podermos contar e julgar os atos. Agitamo-nos muito, condenamos ou "canonizamos", com feroz sofreguidão, sob o chicote da impaciente pressa do tempo. Esquecemos Deus, para quem um dia é igual a mil, e mais ainda nos esquecemos de que nada sabemos dele, nem da sua presença no coração de cada um de nós, cujo íntimo só Ele conhece. Estar à mão esquerda de Deus, poderá ser uma queda no esquecimento ou na nulidade, mas também significar que o Rex Tremendae Majestatis se esqueceu do castigo, pelo menos desde o dia em que o descobrimos na pessoa incarnada do Filho que nos ensinou como tudo é perdoado aos que muito amarem. Deus não tem mão esquerda. Mas nós temos inquietação. Nem o José, enquanto por cá andou, a conseguiu sempre disfarçar.


Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira

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