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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

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   Minha Princesa de mim:

 

   Contemplo, num velho livro sobre cinema, uma magnífica Ingrid Bergman, prestes a ser queimada viva enquanto Jeanne au Bûcher, no filme de Rosselini (1954) com texto de Paul Claudel e música de Arthur Honegger. Este, com a sua proverbial modéstia, diz da sua própria partição: Toda a atmosfera musical se atém ao texto. A partição já lá está, e o compositor só tem de se deixar guiar... O poeta, por sua vez, diz-nos do que se trata, e é isso mesmo que compreendo agora neste plano cinematográfico da Ingrid: O cimo da vida de Joana d´Arc é a sua morte, é a fogueira de Rouen. É desse cimo que ela encara toda a série de acontecimentos que ali a conduziram, desde os mais próximos até aos mais longínquos, desde a consumação até à origem da sua vocação e da sua missão. Assim os moribundos, diz-se, vêem na hora derradeira desenrolarem-se todos os acontecimentos da sua vida, à qual a eminente conclusão confere um sentido definitivo. Tal apocalipse, no sentido de revelação final, de certo modo também foi aspiração de Teilhard de Chardin, quando disse: Não tenho mais ambição do que a de deixar atrás de mim o vestígio de uma vida lógica, toda virada para as grandes esperanças do mundo. Na sua homenagem ao compatriota Albert Schweitzer  --  que ele muito admirava  --  Honegger escreve: No nosso mundo, por todos os lados dominado pela procura do proveito material, onde por toda a parte, mesmo na ciência, se manifestam as aspirações ao ganho imediato, ou por essa satisfação obtida em detrimento do vizinho, e onde podemos ver esses pequenos países que constituem a Europa sacrificar o que ainda poderia subsistir da nossa civilização, é admirável ver um homem que em nada abdica do seu ideal... Esta atenção ao sentido da vida, e a necessidade íntima de comunicar uma qualquer graça que nos inspire, leva o compositor a procurar música com carácter, directa, simples, sem preciosismos técnicos nem sofisticações: Foi o que tentei realizar na "Jeanne au Bûcher". Esforcei-me por ser acessível ao homem da rua, sem deixar de interessar o músico. Talvez por isso, Ansermet terá dito de um Concertino de Honneger: Dir-se-ia que foi Mozart quem compôs isto hoje... E penso que o processo criativo, esse crescer da centelha para o acender de ideias e sons, sobretudo essa sobreposição do inesperado da graça ao esperado da regra, tem a ver, em Honegger como, anteriormente, em Mozart, com a surpresa de uma inspiração que a vontade própria não determina: Com a maior sinceridade do mundo, grande parte do meu trabalho escapa à minha vontade. Escrever música é levantar uma escada sem poder apoiá-la a uma parede. Não há andaimes:  o edifício em construção apenas se mantém em equilíbrio pelo milagre de uma espécie de lógica interior, de um sentido inato das proporções. Sou simultaneamente arquitecto e espectador da minha obra: trabalho e considero. Quando um imprevisto obstáculo me trava, deixo o que estabeleci, sento-me no sofá do ouvinte, e digo para comigo: depois de ter escutado o que até agora ouvi, que poderei desejar senão o arrepio do génio ou, pelo menos, a impressão de ter conseguido? O que é que, logicamente, deverá acontecer que me satisfaça? E tento encontrar a continuação, não a fórmula banal que todos prevêem, mas, pelo contrário, um elemento de renovação, um ressalto do interesse. E a pouco e pouco, seguindo este método, se termina a minha partição.

   Ninguém, Princesa, conseguiu até hoje demonstrar o que é isso a que chamamos génio. Há quem o atribua a factores genéticos, a elevados quocientes de inteligência, etc.; tal como tem havido quem pretenda que muitos daqueles que vão sendo considerados génios, de genial nada têm e até se enganaram redondamente. Para o meu temperamento anárquico, essa é questão de somenos importância, não simpatizo com hierarquias, não creio em superioridades inatas. Mas aprecio e amo esse pensarsentir, tão autêntico e tão humilde, de quem não sabe dizer porquê. Bem aventurados os que procuram porque só esperam, os que encontram, ou são achados, porque sabem escutar. O que me parece admirável na história de Joana d´Arc não é o aproveitamento político, nacionalista ou religioso, que dela se tem feito, por considerável que seja. O milagre é outro: é o simples facto de tantos de nós  --  e de muitos escritores, músicos e artistas  --  se terem interrogado sobre o que, na pessoa e na saga da Donzela de Orleães, é inexplicável, ao ponto de nos perguntarmos sobre o que, em nós mesmos, não conseguimos explicar. Faz-se silêncio.

   E com esse silêncio amigo te deixo

                        Camilo Maria 

 

Camilo Martins de Oliveira