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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

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      Minha Princesa de mim:

 

      Li recentemente um artigo de Steven Erlanger, no New York Times, retomando o tema do valor universal dos princípios da democracia ocidental e do sistema económico liberal-capitalista. Cita, claro está, Francis Fukuyama e a sua tese do fim da História, quando, em 1989, apontava a chegada ao ponto final da evolução ideológica da humanidade e a universalização da democracia liberal como forma final de governo humano. Comenta o articulista que hoje, diante do reforço do autoritarismo chinês, da evolução de uma Rússia cada vez mais ditatorial e revanchista, e do crescimento do Islão radical, a grande vitória do liberalismo ocidental parece menos evidente, e os seus valores ameaçados no seio mesmo das sociedades ocidentais. E logo vai buscar, para ilustração de como, num novo mundo emergente, liberalismo e comunismo, ambos são invenções ocidentais, esta afirmação do politólogo búlgaro Ivan Krastev: O ano de 1989 foi visto como a vitória do universalismo, o fim da história, excepto que, para os outros países, esse período não inaugurava um mundo pós guerra fria, mas uma era pós colonial. E, mais adiante, depois de referir países emergentes, como o Brasil, ou "excepções", como a Rússia  --  que julgam hipócritas os preceitos do Ocidente --  afirma que a batalha dos valores ultrapassa a questão da democracia, e volta a citar Krastev: «Pensa-se que o individualismo e a democracia formam a linha de partilha do mundo, quando, na realidade, é o sexo», concluindo que, para este, o lugar das mulheres e os direitos dos homossexuais são a nascente de divergências abissais. Rejeitando os valores liberais do Ocidente, que promove a igualdade entre os sexos e a liberdade sexual, a Rússia conservadora acaba por fazer causa comum com muitos países africanos, mas também com teólogos do Islão, com o Vaticano, fundamentalistas protestantes e judeus ortodoxos. Tudo isto dá para pensarsentir. Ponho-te comigo à janela, para olharmos o mundo e irmos pousando, aqui e ali, o nosso olhar. Calados, olharemos para ver, não especulamos.

   Por qualquer razão (providência ou acaso?), ocorre-me uma notícia da BBC: Nadiya Hussain, cidadã britânica, filha de imigrantes vindos do Bangladesh, acaba de ganhar o primeiro prémio do concurso The Great British Cake Off, batendo, quanto a audiências televisivas, o registo absoluto de 2015: 13,4 milhões de telespectadores! Muçulmana, apareceu sempre de cabeça coberta, assim confeccionando, no dia da vitória, um perfeito mil-folhas de framboesas e uns deliciosos "éclairs", seguindo e melhorando os ensinamentos recebidos do seu mestre pasteleiro, professor inglês de pastelaria francesa. Teve ainda, admirável mulher, a corajosa lucidez de apresentar um bolo de casamento, de três andares, conforme à ortodoxia ocidental, mas decorado com joias do seu próprio enlace matrimonial, e posto num sari com as cores britânicas. Não invento nada, a notícia vem nos jornais e tudo foi visto na TV! Fez questão em sublinhar que esse bolo, estranho à tradição do país da sua família de origem, era hoje, afinal, o do seu casamento antigo com Abdul, engenheiro informático e pai dos três filhos do casal. Não acrescentarei nada, nada, a esta história, minha Princesa de mim, espero apenas que ela nos sirva de tema de meditação, sobre a força humilde, sensata, laboriosa e persistente, das mulheres, e sobre as vantagens de entendermos a inspiração  --  essa que o espírito divino na nossa humanidade sopra, e nos faz mudar para mais próximos.

   Em política, Princesa, como em diplomacia, deveria também prevalecer esse princípio da busca da proximidade, dessa aproximação ao que Michelet chamava l´introuvable milieu, e o espírito independente de La Fayette moderação: A verdadeira moderação consiste, não tanto, como muitas pessoas pensam, na procura teimosa de um centro entre dois pontos quaisquer, e variáveis ao sabor dos tempos, mas na tentativa de reconhecer o ponto da verdade...    ... Meus senhores: a verdadeira moderação consiste em procurar o que é verdadeiro, o que é justo, e a isso nos atermos. Só acrescento, minha Princesa amiga, que, quando sinceramente procurarmos, iremos nus de preconceitos, sem nos estimarmos superiores aos outros, guiados apenas pelo gesto fraterno do reconhecimento mútuo.

   E, já agora, quiçá por estar velho e a acabar o dia, deixo-te, dando-te a mão, este desabafo de Roland Barthes, o grande semiólogo, ao seu amigo Philippe Sollers, quando perdeu sua mãe: Ai de mim, ela já cá não está, para eu saber a que casa recolher...

                         Camilo Maria 

 

Camilo Martins de Oliveira