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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

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     Minha Princesa de mim:

Acordar tornou-se, para mim, todas as manhãs, abrir os olhos para aflições da vida. Mas sempre me consola uma entrega íntima ao pensarsentir que, nem eu nem ninguém, mas só Deus, e Deus apenas, conhece o segredo das coisas... Tudo é graça! Tem-me ajudado muito, no dia a dia e a toda a hora, repetir, até à mansidão da serenidade, essa palavra de Santa Teresinha de Lisieux  --  onomástica da minha avó paterna, e muito da sua devoção  --  que aprendi na leitura de Bernanos: Tout est grâce! Persegue-me hoje mais essa lembrança, quiçá por calhar a uma sexta feira  -  que é sempre mais dia da Paixão de Cristo  -  o primeiro deste novo ano.

Olho agora para uma relíquia de Santa Teresinha, um pedacito  do escapulário do seu hábito de carmelita, conservado numa carteirinha de couro: era da minha Avó, recebia-a de meu Pai que, tal como eu, depois, a trazia sempre consigo. Crente, como eu também sou, talvez até um pouco místico, todavia não era, nem eu sou, homem de meticulosas devoções. Aliás, Princesa, creio que uma religião despojada de panteões  nos aproxima mais do indizível mistério de Deus. Mas nesta relíquia da Avó Teresa palpita uma secreta relação familiar, cuja tradição chegou até mim e, se Deus quiser, irá  ter com os meus filhos, com a minha filha mais velha, homónima da sua bisavó, e dela passará para os que já são netos. Afinal, vai-nos dizendo, a todos, que desde sempre nos pertencemos. Nesse sentido, a família é um templo que habitamos. Bem sei que nem sempre será lisonjeiro habitar a memória, e desde sempre foi arriscado e impossível historiar um futuro qualquer, é muitas vezes enganador aquilo que a língua inglesa tão bem define como wishful thinking. Mas tem este uma virtude maior do que a esperança: a força de um amor que acredita e quer construir. Chamar-lhe-ia amor difícil  -  sabendo que os fáceis não são amores  -  ou, mais claramente, amor presente. Esse que está sempre aí, imenso como um mar que fosse sereno no fundo (será algum?) e ansioso na ondulação em que vai tremendo e espuma... Mas não há amor possível sem presença  -  por isso é tão sábia e cheia de graça a saudade portuguesa, essa enorme força que torna o ausente presente  -  e, como disse o monge de Dostoievsky, só nesta vida nos é dada essa única oportunidade de presentemente amar...

Nasce este ano de 2016 no seio do jubileu da misericórdia. Hoje, talvez em demasia de festivais fáceis e ódios renitentes, os nossos corações, terão mais dificuldade em acolher e ecoar, no íntimo deles, um vibrante apelo ao júbilo, à alegria de perdoar e ser perdoado, à simplicidade magnífica da paz, essa que, em verdade, é a única majestade de todos. Bendito seja quem nos lembra a boa nova do perdão mútuo, mais alta do que todas as barreiras...

                                                                                                            
                                                                                                                   Camilo Maria

  

Camilo Martins de Oliveira