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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

   

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      Minha Princesa de mim:

 

   Contaram-me ontem uma história cómica, em que o ridículo não matou mas ofereceu uns tabefes inofensivos. Garantiram-me a veracidade do acontecimento: dois senhores encontram-se, pela primeira vez, numa tertúlia de amigos comuns, e apresentam-se: -- «Chamo-me Fulano Varanda...»  -- «E eu Beltrano Janela». O primeiro, pessoa sempre susceptível e temperamental, não achou graça ao que, aliás, era a simples realidade de um apelido, e... zás! atira um bofetão ao interlocutor. Assim começou uma disputa zás-trás, que ficou conhecida como a guerra de varanda e janela.

   Ouvi o conto e logo imaginei outro diálogo: -- «O meu nome é Sicrano Portas.»  -- «De entrada ou de saída?»  -- «De saída da crise e de entrada na prosperidade!» Como vês, Princesa, a fantasia tem muitos nomes. Quiçá ficaria melhor dizer «O meu nome é fantasia» em vez de «O meu nome é legião». Seria menos assustador. E, sobretudo, bem mais próximo da realidade.

   Olha, o Jerónimo Bosch  --  cujo quinto centenário da morte celebramos este ano  --  ganhou seu apelido por  ter nascido e vivido em ´s-Hertogenbosch, no Brabante holandês, mas a família era oriunda de Aachen (Aix la Chapelle em língua franca), na Alemanha fronteiriça, pelo que ele próprio fora primeiro conhecido por Jeroen van Aken. Fixou-o em ´s-Hertogenbosch (ou Bosque do Duque) o casamento com senhora rica e da alta, vinte e cinco anos mais idosa, que lhe trouxe posição social e fortuna, o que fez dele membro de pleno direito da selecta Confraria de Nossa Senhora, que não era associação de artistas, mas de clérigos, académicos e notáveis locais. Talvez o conforto material e mundano lhe proporcionasse o lazer e a liberdade de pintar as suas fantasias, e nos oferecesse, a nós, ainda hoje, a aventura visual e lúdica de percorrermos, com o olhar e alguma malandrice da alma, O Jardim das Delícias Terrestres, O Carro de Feno, o Juízo Final ou As Tentações de Santo Antão, tríptico este exposto em Lisboa, hoje no MNAA, mas adquirido na Flandres, logo no século XVI, por Damião de Góis.

   Tem-se debatido muito, alvitrado e adivinhado a obra desse pintor flamengo (holandês) do século XV, falecido em 1516. Até se escreveram labirínticas teses sobre a sua suposta heresia e filiação em sociedades secretas, cheirando a diabólico enxofre. Ele foi certamente, pelo poder das suas insólitas figuras e cenas, inspirador de vários momentos da pintura de um Pedro Bruegel, o Velho, por exemplo: a este se atribui a novidade da representação das bruxas, com seus caldeirões fumegantes, vassouras animadas, gatos pretos e morcegos. Também se vê em El Bosco (assim lhe chamam nuestros hermanos) um precursor do surrealismo e de outros universos oníricos. Mas fala-se menos da sua pertença ao mundo do seu tempo, à relação com a Utopia de Thomas More ou o Elogio da Loucura de Erasmo de Roterdão. Todavia, quiçá haja uma intenção moralizante na pintura de Jerónimo Bosch: os próprios santos que ele mais apresenta são, na sua maioria, eremitas, isto é, homens inspirados pela contemptio mundi , desprezo do mundo terrenal, renúncia a riquezas e prazeres; e aqueles que, pelo contrário, se deliciam com a vida da carne, esses mesmos que vemos gozando no Jardim das Delícias Terrestres, tampouco nos levam ao engano. Pois é evidente a leviandade despreocupada dos seus comportamentos, salta-nos à vista que levam vidas esquecidas, nem precisamos de os reencontrar alhures, noutra cena, a serem precipitados nas profundezas e levados para o inferno, arrastados pela corrente inexorável de um rio. Mais curioso ainda, para mim, na observação das representações do Bosco, será o como o rosto do pecado é a loucura, tal como ele a pinta, essencial, nas cenas de deboche e intemperança: olha tu para o Tríptico do Vagabundo, seja para o painel que está no Louvre (A Nave dos Loucos), ou para o que se encontra em New Haven (O Deboche e o Prazer). Duas cenas de manicómio clássico, ou de inconsciente bebedeira... Mesmo quando pinta a Paixão  --  repara no Cristo carregando a Cruz, que está em Ghent  --  só os rostos do Messias e de Santa Verónica parecem humanos, todos os outros são hediondos, fácies de monstros tomados pela loucura do ódio. Em Jerónimo Bosch, o pecado é letal, louco e feio. E quando é prazenteiro surge em figuras e cenas cujo irrealismo significa o trágico-cómico da doidice.

   Tenho para mim que essa pintura não é um devaneio onírico nem um simples deleite caricatural, antes traz uma pesada carga acusatória, é um alerta contra o risco que a Cristandade e a Igreja, que se iam emancipando da cultura medieva, corriam por pactuarem com os vícios capitais do dinheiro e da soberba, da gula e da luxúria, quiçá os mais apontados por parecerem ser os que mais afectavam o alto clero e as ordens religiosas, nesses tempos imediatamente anteriores ao surto da reforma luterana. Assim, o Bosco, como Moro e Erasmo, representa uma consciência eclesial que aponta erros, desvios e pecados, e reclama correcções e remédios. Tal consciência, perdoa-me a ousadia verbal, é permanente no inconsciente da Igreja, por isso raiz e fonte das reformas sempre recorrentes na sua história. Noutra carta te falarei mais das Tentações de Santo Antão  --  tal como as apresenta o tríptico do Bosco que está em Lisboa, belo resumo da tradição teológica seguida pelo pintor holandês. Por agora, limito-me a observar que essa representação se inspira, entre outros textos e fontes orais, nas páginas que, na sua Legenda Aurea, Tiago Voragino consagra ao santo eremita do Egipto. Começa assim esse relato: O nome de Antonius vem de ana (no alto) e de tenens (o que possui), como para significar quem possui os bens do alto e despreza os da terra. Ele desprezou o mundo, que achava imundo, perturbado, transitório, enganador, amargo. E  a respeito disso, diz Bernardo: «Ó mundo imundo, para quê tanto ruído? Porque tentas tu perder-nos? Queres reter-nos e foges? Que farias tu se não fosses efémero? Se fosses amável, quem é que não enganarias, já que, apesar da tua amargura, nos abusas acerca da doçura dos teus alimentos? Na verdade, esta citação do Voragino não é de São Bernardo, mas sim do sermão 105 de Santo Agostinho.

   Está também no Prado, em Madrid, tal como o Jardim das Delícias, um trabalho provavelmente anterior, ainda da sua juventude, ilustrando uma charlatanice daquele tempo, conhecida como Extracção da Pedra da Loucura, ou seja uma cirurgia para retirar do cérebro de dada pessoa o tal calhau que encerraria a sua estupidez, livrando assim o paciente da sua doidice. Felizmente, tal operação era mais conto do que prática, e foi tema de escritos e pinturas de outros artistas coevos. Neste óleo sobre madeira, pintado por volta de 1475/80, o cirurgião traz a cabeça coberta por um funil, tal como o bêbado que cavalga um barril navegante de vinho, no painel do Deboche. Da cabeça operada retira um flor, que alguns identificam, tal como outra colocada sobre mesa próxima, com uma tulipa, cujo nome, em holandês, também pode querer dizer folia ou estultícia. Ao acto de aldrabice médica assistem um frade e uma freira, esta tendo, em cima da cabeça, um livro fechado. Este tanto pode significar que há quem não aprende nada, como quem siga doutrinas erradas. Seja como for, a alegoria é clara: anda por aí loucura a mais, não há quem aprenda, e os religiosos são cúmplices dos charlatães. Na Nave da Loucura, também frade e freira estão onde não deviam, e desregrados.

   Tudo isso nos diverte, até talvez distraia. Mas penso que não errarei se disser que Jerónimo Bosch não pretendia distrair, para divertir quem quer que fosse, antes apontava o que entendia por males destruidores da vida espiritual, de modo suficientemente forte para que todos o entendessem assim também. Estarei enganado? Hoje, a meio milénio de distância, olhar para a pintura dele é, para mim, um prazer apocalíptico, isto é, em sentido etimológico, revelador. Desvenda-me para ver uma época em que chegou ao fim um período da história e da cultura da cristandade europeia. A pedir reforma.

   Termino esta carta, pedindo-te que olhes para outro tríptico que está no Prado: O Carro de Feno. Fechado, por recolha dos dois painéis laterais, mostra-te a pintura exterior destes: um vagabundo pobre, um peregrino que caminha da direita para a esquerda, afastando com seu varapau um rafeiro que lhe quer ir às canelas magras, deixando para trás uma cena em que ladrões atam a uma árvore outro viajante que assaltaram, uma caveira e ossos de animais mortos, espalhados pelo chão, enquanto se aproxima de uma pontinha de aparência muito frágil, que o conduzirá...para onde? para lá de um rio que terá de atravessar. Simboliza a alma humana, errante pela vida terrena, seus perigos e ameaças. É interessante observar que, aberto o tríptico, deparamos, na pintura interior do painel da esquerda, com o jardim do Éden, o pecado original e a expulsão de Adão e Eva do Paraíso. No da direita  --  à saída, portanto, do olhar que percorre todo o tríptico, no sentido da nossa leitura  --  surge o Inferno e seus tormentos, como que a dizer que acabará mal o itinerário de muitos peregrinos na terra. Explica-se a razão de tal desenlace pela pintura do painel central, com o carro de feno bem ao meio. Acima dele, numa nuvem do céu, a figura de Jesus Cristo Salvador procura chamar os figurantes que, em baixo, cruelmente lutam pela posse de molhes de feno que vão arrancando do carro. No topo do monte dessa palha que enche a carroça, pessoas entregam-se a prazeres da vida, animados pela corneta do diabo, que é o próprio nariz do demónio, ao lado direito, e virando as costas a um anjo que , à esquerda, junta as mãos em oração ao céu... Alguém tenta trepar, por uma escada, pelo feno acima, mas a maioria luta cá em baixo pelo seu quinhão de palha, e ei-los que vão saindo pela direita baixa, levados por demónios... À esquerda, por detrás do carro, um cortejo de gente notável se apresenta, levando à sua frente, montados a cavalo, o Papa e o Imperador...! Enquanto isso, em primeiro plano, um pai conduz o filho para o feno (para lhe mostrar o que é a vida? para lhe dar a lição do mundo?), uma cigana e um charlatão vendem enganos, monjas enchem sacos de feno, sob a presidência da abadessa que, gorda e sentada num cadeirão, segura numa mão um rosário e noutra um copo de vinho. Com um molhito de palha na mão, outra monja procura atrair a si um rapaz...que se afasta dela, a tocar gaita de foles, símbolo de homossexualidade. Neste quadro carnavalesco da vida, o mal parece levar a melhor sobre o bem, a ilusão ser mais forte do que a fortaleza do espírito. A mensagem parece ser pessimista, o próprio peregrino, representado no exterior dos painéis laterais, que se fecham como portas, parece hesitante no combate entre a virtude e o vício, sobre a primeira não se abre outra porta ou janela que não seja a visão do Paraíso, deixado para trás, à entrada da vida.

   No seu Manual do Cavaleiro Cristão, Erasmo retrata o mesmo combate do bem e do mal no humano. E refere-se ao livro bíblico dos Provérbios (9, 13-18), que talvez esteja representado por Bosch noutra pintura do Peregrino, esta existente no Boymans-van Beuningen Museum, em Roterdão, quando ele passa em frente de uma casa de má fama e uma mulher lhe acena de uma janela desmantelada. Deixo-te, Princesa de mim, com o texto bíblico, convido-te a visitares todas as obras de que aqui te falo, e outras mais, no Noordsbrabants Museum, em ´s-Hertogenbosch, onde estarão em provisória exposição até 8 de Maio. Mas diz o provérbio Senhora Loucura finge Sabedoria:

 

          A Senhora Loucura é impulsiva,

               ingénua e ignorante!

          Senta-se à porta de casa,

               num trono, no alto da cidade,

          para chamar os transeuntes,

               esses que seguem a direito o seu caminho.

          «Quem é simples? Faça um desvio por aqui!»

          Ao homem insensato ela diz:

          «As águas desviadas são doces,

               e saboroso o pão do mistério!»

          Ora, ele não sabe as Sombras que há ali

               nem que os seus convidados são para os vales do shéol.

 

                         Camilo Maria


Camilo Martins de Oliveira