CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA
Minha Princesa de mim:
Procurando um Erasmo que me servisse de ilustração ao que gostaria de ter dito sobre Jerónimo Bosch -- e não fui capaz -- achei um livro que, pela dedicatória de quem o ofereceu a minha Mãe, no 1º de Outubro de 1953, só poderá ser, na minha posse, uma recordação de leitura antiga, algo que o adolescente que fui (serei ainda, se Deus quiser) provavelmente subtraiu à biblioteca materna: o Erasmo de Roterdão, de Stefan Zweig, em tradução portuguesa de Alice Ogando, publicada pela Livraria Civilização. Amareleceu o papel, as páginas foram separadas à faca, penso que por mim, minha Mãe nem o terá aberto, tê-lo-ia provavelmente lido em alemão ou, traduzido, em holandês ou francês. Esta obra, assim, tal qual a encontrei, é toda minha... entende isto em termos habilíssimos! Para o que agora importa -- se por aí ainda houver, para além dos importantíssimos eles mesmos, coisas importantes -- é que fui abrindo cegamente o livro, e dei com um trecho que vinha mesmo a calhar para o que queria dizer-te: mais e outros vários comentários ao Bosco, coevos ou posteriores. Melhor: o passo de Stefan Zweig, que a seguir transcrevo, não refere sequer o nome do pintor holandês, mas só me faz lembrá-lo. É paralelo, acompanha bem. Abençoadas surpresas da vida... Diz assim: O que tem de único e inimitável esta obra [o "Elogio da Loucura"] é a genial mascarada a que o autor nos faz assistir: Erasmo não toma ele mesmo a palavra para dizer as suas verdades aos poderosos da terra: faz subir ao púlpito, em seu lugar, Stultitia, a Loucura, para que ela faça, dela, o seu próprio elogio. Daqui nasce um divertido quiproquó. Não se sabe nunca, exactamente, quem tem a palavra: é o escritor, que fala seriamente, ou é a loucura em pessoa, a quem é preciso perdoar as insolências mais brutais? Estás a ver, não estás, Princesa de mim? também tu, e eu, e todos, olhamos para a pintura de Bosch, e vamos querer o quê? Entender verdades, ou acomodarmo-nos com o divertimento aparente do que preferimos que seja loucura? Acredites ou não, abro ao acaso outro livro, este de 1967, mas na sua edição portuguesa de 1987, pela Fundação Calouste Gulbenkian. Trata-se do Damião de Góis, de Elisabeth Feist Hirsch, traduzido por Lia Correia Raitt. Fatalmente -- não te esqueças de que também sou fadista -- vou cair num passo em que surge o indispensável Jerónimo Bosch: Tem-se afirmado por vezes que não poucos humanistas erasmistas, entusiasmados com o poder de raciocínio do homem, sofriam de tibieza religiosa. A leitura da poesia de Grapheus [lembra-te de que os poemas de Grapheus foram publicados com a Legatio de Góis, em 1532] não permite duvidar de que ele e Góis eram capazes de um forte compromisso religioso. Verifica-se, contudo, que a sua principal preocupação era a natureza pecadora do homem. É bastante provável que essa atitude reflectisse uma disposição mais generalizada na época do que pode parecer à primeira vista. Mas seria erróneo concluir daí que outros aspectos da religião estivessem vedados aos humanistas; a razão porque acentuavam a ética, mais do que qualquer outra matéria religiosa, era que tinham uma clara consciência do declínio da moralidade. Tais sentimentos talvez contribuam para explicar o entusiasmo de Góis pela obra de Jerónimo Bosch, o pintor holandês que morreu em 1516. Góis possuía vários painéis grandes pintados por Bosch... ... O espírito insólito de Bosch, a sua audaciosa imaginação, os seus enormes poderes criadores têm sido de há muito uma fonte inesgotável de espanto. Os historiadores de arte têm procurado, e continuam a procurar, decifrar a multiplicidade de figuras distorcidas que povoam as suas telas. Opinou-se que a fantasia de Bosch se serviu de toda a magia, alquimia e misticismo inventados pelos séculos anteriores. Mas com que fim? A maioria dos entendidos concorda em que as invenções de Bosch eram símbolos da corrupção completa da existência humana. Via um mundo tão cheio de mal que, na sua opinião, alguém como Santo Antão, que lutava pela purificação, não tinha outra alternativa que não fosse o alienar-se completamente do mundo em seu redor. Damião de Góis tinha consciência da ousadia da visão do grande pintor... ...não restam dúvidas de que Góis se sentia solicitado pelo pathos religioso das criações de Bosch; é evidente que ele discernia neste pintor uma das inspirações menos convencionais da época. Na sua biografia de Thomas More, Peter Ackroyd chama a atenção dos seus leitores para uma curiosidade que não resisto a referir aqui, de tal modo ela me parece d´époque, e prestes a ajudar-nos a sentir o seu ambiente. Antes da citação, todavia, lembro-te de que, tal como para Tomé e Tomás, em português distinguimos Antão e António, enquanto que, noutras línguas, em inglês ou francês, por exemplo, apenas se usa Thomas ou Anthony (Antoine, em francês). A escola de que adiante se fala, em português seria a de Santo Antão. No capítulo intitulado St. Anthony´s Pigs, Ackroyd escreve: The pupils of More´s school were known as "Anthonie pigs", porque a figura daquele santo era habitualmente acompanhada por um desses animais; o porco fora, outrora, um símbolo do diabo, mas estava, agora, domesticado, e o próprio Santo Antão já era santo patrono de cevados e talhantes. Pouco se sabe de porcos londrinos no século XV, excepto que eram mais pequenos do que os da actual espécie, mas a conexão entre eles e os frades hospitalares de Santo Antão estava bem estabelecida. Aqueles desses porcos que fossem considerados pouco saudáveis ou imperfeitos para serem postos no mercado eram retirados das varas e levavam um corte numa orelha [como, na tradição judaica, e não só, os animais impróprios para sacrifícios rituais], em sinal de impróprios para consumo; era de uso que o capataz de Santo Antão atasse um chocalho ao pescoço de tais animais, antes de os largar e deixá-los andar pelo lixo e montes de merda das ruas de Londres. John Stow relata que "ninguém os atacaria ou raptaria". Em vez disso, eles eram alimentados à mão, tal como os londrinos alimentavam aves de rapina e corvos: eram, como essas aves, consumidores de restos abandonados. Assim se divulgou o provérbio "Tal como com quem andas me diz quem és, também se guincha como um porco de Santo Antão"... E este dito se colava aos alunos do colégio de Santo Antão! Mas não esqueçamos um pequeno diferencial: se, pela sua dieta londrina, os porcos fossem crescendo em gordura e saúde, seriam recolhidos pelas autoridades de Santo Antão e, então, assados e comidos. Digo-te, Princesa de mim, que, mudem-se ou não os tempos, nem sempre se mudam as vontades, menos ainda certos apetites... Tampouco sei se o eremita copta passeava varas de porcos ou trazia algum pela trela... Bizarria britânica, ou sei lá quê, por alguma razão Santo Antão e suínos foram emparelhados. Talvez por antinomia ou, quiçá, por alguém ter pensado que, no redil de Deus, até os porcos podem ter o seu lugar e o seu pastor... Desde que não abusem. Recordo que no Tentações de Santo Antão que está no Prado, um porco está calmamente deitado ao lado do eremita que, acocorado, parece meditar ou rezar, indiferente às tentações que o rodeiam. O suíno, alhures representado como símbolo de luxúria ou avareza, é aqui seráfico companheiro do monge. Mas no Inferno, pintura também guardada no Prado, aparece um porco (ou porca) com uma touca de monja, abraçando ternamente um condenado: pacto de bruxaria, avareza ou luxúria, já de vários modos foi a cena interpretada, mas aí não é certamente o suíno amigo do Santo. Contudo, correram tempos e mundo várias imagens de Antão com tal animal como companheiro. Por outro lado, a devoção popular fez dele o patrono dos cesteiros, dos animais domésticos, mas também dos talhantes e dos fabricantes de enchidos... Terá sido, e foi mesmo, diabolizado o suíno, mas também ninguém pode negar que, já muitos anos antes dos contos dos três porquinhos, e dos simpáticos bonecos do Walt Disney, este animal gozou de alguma estima. Bem haja! Bem haja o dito e cada um dos muitos que souberam estimá-lo e apreciá-lo, sem quaisquer tabus, pachorrentamente vivo e foção ainda, ou assadinho a preceito. Até para um pobre porco pode a vida ser um volteio de surpresas... Bem escreveu, no seu Misantropo, o nosso próprio Castilho, tão clássico: como nunca me vi, priminha, em tais assados, que posso responder? Assim me dou eu mesmo comigo, hoje, em dia de tanto vento e água, vendo tanta volta que pouco entendo... E quiçá entendendo o que não vejo... Sopro-te um beijo e esqueço a velhotice.
Camilo Maria
Camilo Martins de Oliveira