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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA


D. João I, de Boa Memória 


Minha Princesa de mim:
 

Posto que vemos que toda a cidade é uma comunidade e que toda a comunidade se forma com vista a um bem (todos os homens, com efeito, fazem todas as coisas com vista ao que têm por bem) é evidente que todas as comunidades visam um bem. Mas tal é sobretudo o caso, e dizendo respeito ao bem soberano entre todos, da comunidade soberana entre todas e que compreende todas as outras: aquela que se chama "cidade", a "comunidade cívica". Assim começa Aristóteles a escrever a sua Politica. O que aqui se traduz por cidade é, no original grego, polis, conceito que não é propriamente sinónimo do que hoje designamos por Estado. Citando Auguste Francotte, na sua Notice para a edição da Pléiade: Uma tradição de dois séculos,  geralmente respeitada, leva-nos a chamar Política a uma obra que os Antigos soíam designar sob o título de Politika, palavra plural do género neutro significando Livros respeitantes à Cidade, ou Coisas relativas à Cidade. Recorde-se que, no sentido da Grécia clássica, a cidade é uma comunidade humana tendo por centro uma cidade ou simples burgo e governando-se, pelo menos teoricamente, segundo as suas próprias regras e de modo soberano. Traduzo agora um passo dum comentário de Nicole Oresme (1320-1382) na sua tradução daquela mesma obra do estagirita grego, feita por ordem de Carlos V de França: Todos os Franceses são da mesma linhagem, pois não têm em comum qualquer semelhança ou afinidade ou proximidade natural...  ...pelo que o rei, que é pai de seus súbditos,... ...deve ter unidade ou conveniência de linhagem, como foi dito. Daí se segue que é inconveniente ou coisa desnatural ou não natural que um homem seja rei dum reino e que seja de um país estranho, principalmente doutra gente, doutra nação, doutra linhagem. Interessante é observar como, anterior à nossa ideia de Estado, enquanto organização política e administrativa de populações num mesmo território, surge aqui o forte sentimento de pertença mútua a uma comunidade. Jacques Krynen, no seu L´Empire du roi, escreve, que o Songe du vergier, composto e traduzido de latim para francês por ordens do mesmo Carlos V de França, na mesma linha de pensamento, responde a uma dupla e constante preocupação: demonstrar a absoluta independência da realeza francesa face às potências exteriores, o papado e o império, mas também a plenitude do poder do monarca no interior do reino. Deste modo se vai constituindo a cidade ou comunidade cívica enquanto nação unida e independente. E, com a afirmação do poder real, nesses tempos, também se impôs a regra soberana da convocação de assembleias representativas, que em Portugal se chamavam cortes, inspirada no principio do direito romano quod omnes tangit ab omnibus approbari debet... O que a todos toca por todos deve ser aprovado.  Foi uma dessas cortes que, à época, fez, do Mestre de Aviz, o Senhor Dom João I, rei de Portugal. De Boa Memória. Só a justiça, esse dever de se atribuir a cada um o seu direito (jus suum cuique tribuendi, dizia Ulpiano) pode ser factor de união, pois não se cimenta uma comunidade na desordem da indiferença, da exclusão ou do favoritismo. Qualquer projecto social, qualquer comunidade cívica é, necessariamente, uma obra comum visando o bem de todos. Este, todavia, não é uma uniformidade... vive, sim, da alegria da diversidade partilhada: todos somos mais ou menos jeitosos, engenhosos, poetas, pelintras, sortudos, azarentos ou preguiçosos, o que se queira ou nos foi dado ter...mas, em comunidade, todos precisamos dessa confiança na certeza de que a nossa reunião se faz na medida em que, para o bem de todos, a cada um é reconhecido o seu direito. Muitos, e pesados, esforços e sacrifícios foram pedidos aos portugueses - até para que portugueses se fizessem  -  pelo rei de Boa Memória. Mas não se propôs fazer a riqueza de uns sobre a pobreza de outros. De tudo isso, rei, povo, esforço, sacrifício, ficou sobretudo essa boa memória da alegria de nos termos feito comunidade cívica, independente e justa. Como uma grande família.

Há coisas assim, Princesa de mim, que, sendo de todos nós, permanecem em cada um como lembranças e desejos íntimos. Nesse sentido, com força de alma, abraçando ainda os refugiados que connosco se acolhem, iremos cumprindo Portugal.
 

Camilo Maria
 

Camilo Martins de Oliveira