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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão

 

       Minha Princesa de mim:

 

   Com tanta epidemia de notícias e declarações, levianas discussões, e acentuada propensão geral a cheirar escândalos, mover processos de intenção, ou seja, afinal, a malquerer, dias há em que me sinto cansado de fugir a tudo isso, um pouco perdido, quase magoado, como se fosse contra mim próprio que se levantassem as insídias... ou talvez apenas por não dar com caminho certo nem método adequado para tratar as questões que, a bem de todos, a todos em debate claro nos devem interrogar. A confusão é o maior obstáculo à inteligência da realidade, do mundo, dos outros.

 

   Essa confusão, sementeira de cizânia, deve-se muito, penso, ao preconceito, em que a soberba se afirma sob variadas formas, inclusive a da pretensão de impor ab initio irrebatíveis verdades pretensamente científicas ou religiosas. Além de demoníaco fator de divisão e sectarismo, o preconceito é culto de cegueira e afrontamento. Pior ainda, facilmente conduz, no olhar para o outro - para o tal outro que Jesus nos ensina que é o nosso próximo - a juízos temerários, isto é, ou a generalizações que acabam por aplicar a universos de indivíduos o mal que pensamossentimos de um qualquer, quiçá no rasto de particular experiência... ou a sentenças condenatórias de uma classe ou espécie: os socialistas são todos corruptos, a malta de direita é toda ladra e exploradora, a esquerda é ateia e contra a família, nenhum muçulmano gosta da paz, etc., etc...

 

   Como católico, e português, custa-me muito ver sectores da minha Igreja, sobretudo entre gente do clero, que pouco ou nada falam do evangelho da alegria - nem sequer seguindo o exemplo do papa Francisco, que enaltece o amor e a misericórdia de Deus - e antes sistematicamente se atiram, presumindo-se polícias duma ortodoxia, a todos quantos pensam diferentemente deles, pois estes sendo livres pensadores ou simples perguntadores, logo serão transviados ou agentes do maligno. Atitude tanto mais estranha quanto, mesmo no interior da própria Igreja, que Cristo quis incarnada em homens que vivem e se sucedem na História, sempre houve e haverá debates sobre os sinais dos tempos e como responder-lhes. Dou-te um exemplo, Princesa de mim, mas poderia dar-te muitos outros.

 

   Fala-se hoje muito na possibilidade, ou não, da ordenação de mulheres - não só porque, na nossa cultura hodierna, já se abriu o acesso de pessoas do sexo feminino a todas as profissões e funções sociais, incluindo ministérios e poderes políticos, militares e religiosos (como se verifica nas confissões anglicana e protestantes do cristianismo e, mesmo, ainda que mais raros, em comunidades judias e muçulmanas), mas também por estar já bem assente que a diferença dos sexos não gradua nem exclui qualquer deles de algo que seja próprio da condição e dignidade humana. Opositores a que a Igreja católica dê esse passo consideram que tal não é possível, simplesmente, porque Jesus Cristo escolheu apenas homens, e não mulheres, para seus apóstolos e ministros. Ciente da insistência deste argumento, o papa referiu a provável - e quiçá documentada nos Atos dos Apóstolos e na Epístola a Timóteo, entre outros textos do Novo Testamento - admissão, na Igreja dos primórdios, de mulheres diáconos... Abriu assim uma porta à investigação e reflexão. Mas já a mim, que não sou papa, me tem ocorrido perguntar, por outro lado, se foi Jesus que, por exemplo, instituiu a obrigatoriedade do celibato eclesiástico - e que textos das Escrituras sustentarão tal obrigação canónica? - pois me parece transparente que tal disposição foi tomada, muito mais tarde, pela autoridade eclesial. Ainda no Concílio de Trento (séc. XVI) se discutiu a questão. E, tanto quanto saiba, Pedro, o primeiro papa, era homem casado, cuja sogra, aliás, Cristo um dia curou. O mesmo Jesus Cristo que, noutra ocasião, perguntado sobre se seria lícito o divórcio autorizado por Moisés (não esqueças, Princesa, que esse era, no judaísmo, apenas o poder de o homem repudiar a mulher, sendo proibido o inverso), respondeu que não, porque Deus os criara iguais, homem e mulher (cf. Marcos, 10, 1-12). Também sabemos que a Igreja, na sequência do Pentecostes, sempre entendeu que deveria atuar no tempo e no modo, e levar a Boa Nova a toda a parte e a todas as gerações, na língua que cada um dos outros entendesse. Não será demasiado arriscado, creio, eu dizer-te, Princesa, que tal significa estar-se atento aos sinais dos tempos, e aos modos como as diversas culturas podem compreender a mensagem evangélica. E não sei - digo-to sem qualquer pretensão - se a maioria das culturas sociais de hoje (porque talvez não possa dizer o mesmo quanto a certas sociedades de outros continentes, por exemplo, mas penso sobretudo na nossa) estarão ainda preparadas para perceber uma mensagem que, fundamentada em conceitos e normas sociais remotíssimos, exclui as mulheres do ministério sacerdotal. E sublinho ministério, porque de serviço comunitário se trata: sacerdote mesmo, como se depreende da própria exegese dos textos neotestamentários, é o próprio Povo de Deus. Mas, ainda que assim não fosse, para o cristianismo a mulher é igual ao homem, e absolutamente nada - muito menos os sexos, que são as duas faces da mesma moeda - ontologicamente os distingue. Será demasiado pedir que não se confunda tradição com preconceito, e se tenha fé no Espírito de Pentecostes? Ou que apenas se entenda que tais normas milenárias, ou os tabus a elas associados, terão determinado, no máximo, na Igreja primitiva, um não acontecimento (a não ordenação de mulheres) sem que houvesse qualquer disposição evangélica expressa que o proibisse? Afinal, não te digo aqui que se deve abrir às mulheres o acesso a ministérios até hoje reservados a homens, simplesmente afirmo que não vejo razão evangélica ou teológica para o recusar, mas apenas o apego a um modelo cultural e antropológico, ultrapassado em muitas das sociedades contemporâneas. Até posso admitir que, nalgumas, tal progresso não possa ser ainda compreendido. Para isso, também, existem dioceses e bispos. Não é pelo facto das Igrejas anglicanas ou luteranas, por exemplo, admitirem mulheres a esses ministérios, que eu irei sentir diminuída a nossa comunhão, com elas, na fé cristã... Ou será que sofremos de machismo viral, ao ponto de tornarmos fulcral tal questão?

 

   Quero trazer aqui uma lembrança dos meus tempos no Japão: ia com frequência comungar na missa dominical de um mosteiro beneditino, em Tokyo. Era, em regra, celebrante o padre O´Neal, que fora aviador americano e bombardeador do Japão durante a guerra. Convertera-se, entrara em religião, era já idoso e poeta prestigiado quando o conheci. Certo dia, teve, a ajudá-lo à missa, uma pastora luterana, e confiou-lhe a homilia. Ela trocara a confissão católica pela luterana, para poder ser pastora. A poucos padres católicos ouvi um sermão tão bonito e bom como aquele, em festa de transfiguração do Senhor. 

 

   Afinal, todos somos chamados à reflexão e à revisão, sendo estes dois passos - o de nos olharmos ao espelho e o de voltarmos a fazê-lo com olhar crítico - indispensáveis condicionantes da profecia. A qual não é adivinha, mas anúncio de conversão. Debruçarmo-nos sobre questões do estatuto da mulher na Igreja, não é apenas correspondermos a interpelações feministas de hoje. Nem tão só distanciarmo-nos, e curarmo-nos, duma persistente misoginia, primitivamente alicerçada na ideia de impureza inata da mulher, esta aliás depreendida da fisiologia feminina (no judaísmo, e não só, aplicavam-se interditos de aproximação das mulheres a práticas religiosas, a sacerdotes, e aos próprios locais de culto, por exemplo, durante a menstruação). É rompermos com aquilo que alguns teimam ainda em chamar "antropologia judeo-cristã", tal como já não aceitamos literalmente o calendário bíblico da criação do mundo. A revelação dos mistérios e o conhecimento das realidades presentes, objecto, respetivamente, da fé e da razão, dão-se sempre, necessariamente, no seio de uma cultura, e por esta ganham forma. Mas o cristianismo não é uma cultura monolítica, a Igreja cristã é uma comunhão na fé, na esperança, no amor redentor, que abraça variadas gentes e culturas, no tempo e no modo.

 

   Por outro lado, e antes de terminar esta carta, deixa-me dizer-te que a subalternização da mulher é um conceito, e uma prática institucionalizada, em escolas de pensamento, momentos históricos, circunstâncias outras, várias e insuspeitas de clericalismo. Já a Declaração dos direitos do homem e do cidadão, de 26 de agosto de 1789, em plena Revolução Francesa, quando começa por clamar que os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos, não inclui aí as mulheres, isto é, não diz homens no sentido de seres humanos, mas tão somente no de género masculino. Aliás, a célebre Encyclopédie de Diderot, em 1751, já definia a mulher como a fêmea do homem... Olímpia de Gouges, girondina, produzirá, em plena Revolução, a sua Declaração dos direitos da mulher e da cidadã, que no seu art.º 10º reclama, para as mulheres, o direito de subirem à tribuna, já que também sobem ao cadafalso. Tal iniciativa, custar-lhe-á a condenação à morte, em 1793, por tribunal revolucionário que assim sentencia: Desde quando é permitido às mulheres abjurarem do seu sexo, tornarem-se homens? Desde quando é costume as mulheres abandonarem as piedosas tarefas do lar, o berço dos filhos, para virem à praça pública, à tribuna dos discursos, à barra do Senado, cumprir deveres que a natureza atribuiu aos homens apenas? Vês, Princesa? Esta questão de certas funções serem masculinas ou femininas não é religiosa. É cultural. E pergunto, em linguagem da gíria: será ainda civilizado excluir as mulheres? 

 

     Camilo Maria   

 

Camilo Martins de Oliveira