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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

Antero de Quental

 

   Minha Princesa de mim:

 

          Ó Deus, Trindade Santa,

          ó luz mais radiante

          do que toda a luz,

          fogo mais ardente

          do que outro qualquer...

          Oceano e paz,

          meu mar sem fundo,

          onde mergulhando

          mais me afundo...

          E mais te demando,

          em te encontrando!

          No deserto saciaste

          a minha sede,

          e com nova sede

          não mataste

          a sede maior

          com que, de Ti,

          fiquei...
         

   Foi um dos sermões do frei Bento Domingues, no Público, que me recordou este poema, uma oração de Santa Catarina de Sena. Pôs-me a pensar na diferença entre inconformista e inconformado. Entre misfit (desadaptado, mal parido) e challenger (desafiante, com fezada)... Entre loosers winners, entre os que pedem e os que nunca dão. Quem perceberá que, para nós, cristãos, Deus é sempre O mendigo? Rebuscando papeis antigos, dei com essa minha libérrima tradução de Catarina de Sena, que acima te deixo...

 

   Há idades para tudo, até mesmo para as coisas que marcam e nunca esquecem. Isto é, nem tudo em nós envelhece. Sinto-me feliz agora, no preciso instante em que te escrevo, ao perceber que continuo inconformado, sem tampouco me ter tornado inconformista. Ensinaram-me os anos que a demanda íntima de mim, do meu eu-com, não tem de se enraivecer contra a minha circunstância. Quiçá até lhe devo algum carinho, é ela, sempre, que me incita à libertação. É bem manhosa a condição humana... E é vã, vazia, como a própria palavra diz, a vaidade, qualquer vaidade. Olho para a Otahi (sozinha), essa pintura em que Gauguin nos entrega uma jovem mulher de Tahiti, ajoelhada na areia, debruçada, com os cotovelos no chão e a cabeça apoiada nas mãos... Pensossinto que talvez se interrogue como as outras, noutra tela: quem sou, donde venho, para onde vou? Não tenho resposta para ela, qualquer vocação será sempre uma aventura. Apenas sei que também tenho sede. Imagino ainda que ela se vai erguer e caminhar para o mar sem fim. E que, mergulhando, não se irá perder, mas irá cada vez mais fundo, até à luz que está no lado de lá do mundo. Talvez cada um de nós sinta de modo diferente essa mesma vocação, com maior ou menor solidão, com mais ou menos egocentrismo a circunscrever-nos a transcendência. A nossa soledad, a grande soledade daquela água, que sentiu o frade dominicano de Montejunto - o tal que terá descoberto essa palavra saudade - tanto pode ser libertadora, como fatal. Pois que uma é a saudade de Deus, que leva Catarina de Sena às profundas do mar e à sede renovada do deserto, outra a saudade de si, uma perdição interior, como a de Mário de Sá Carneiro: perdi-me dentro de mim / porque eu era labirinto, / e hoje, quando me sinto, / é com saudades de mim...

 

   Quiçá seja em Antero de Quental que a luta das saudades, o drama da saudade de Deus e da saudade de mim, tem lugar maior e mais frequente. No Prefácio aos Sonetos do seu íntimo amigo, Joaquim Pedro de Oliveira Martins, a dado passo, observa e cita: E se ainda o dia, a luz, o sol esposo amado, têm o condão de o encher de entusiasmo, é mister desconfiar de um homem mais caprichoso do que todas as mulheres, porque:

 

          Pedindo à forma, em vão, a ideia pura

          tropeço, em sombras, na matéria dura

          e encontro a imperfeição de quanto existe.

 

   Esta nota é mais constitucionalmente verdadeira. «Seja a terra degredo, o céu destino» diz num ponto; e noutro:

 

          Minha alma, ó Deus, a outros céus aspira:

          se um momento a prendeu mortal beleza

          é pela eterna pátria que suspira...

 

   Não acreditemos também demasiadamente nisto, porque Deus não passa ainda de uma interrogação:

 

          Pura essência das lágrimas que choro

          e sonho dos meus sonhos! Se és verdade,

          descobre-te, visão, no céu ao menos!

 

   Mas Antero - que dedicará o seu célebre soneto Na mão de Deus, na sua mão direita, / descansou afinal meu coração... à Senhora Dona Victória de Oliveira Martins - escreve outro, dedicado ao próprio Joaquim Pedro, intitulado Transcendentalismo:

 

          Já sossega, depois de tanta luta,

           já me descansa em paz o coração.

          Caí na conta, enfim, de quanto é vão

          o bem que ao Mundo e à Sorte se disputa.

 

          Penetrando, com fronte não enxuta,

          no sacrário do templo da Ilusão,

          só encontrei, com dor e confusão,

          trevas e pó, uma matéria bruta...

 

          Não é no vasto mundo - por imenso

          que ele pareça à nossa mocidade - 

          que a alma sacia o seu desejo intenso...

 

          Na esfera do invisível, do intangível,

          sobre desertos, vácuo, soledade,

          voa e paira o espírito impassível!

 

   Transcendente, Deus é impassível, não sofre nem passa por nós. Incarnado, permanece connosco, é sofredor e taumaturgo, inquietante e pacificador. A revelação cristã, a descoberta do cristianismo, é esse Deus paradoxal como a condição humana. O desejado repouso final, irrequieto enquanto anseio. Quiçá a prova mais íntima de Deus seja essa insaciabilidade: no deserto saciaste a minha sede, e com nova sede não mataste a sede maior com que, de Ti, fiquei... pedindo à forma, em vão, a ideia pura, tropeço, em sombras, na matéria dura, e encontro a imperfeição de quanto existe... diria Santa Catarina de Quental.
 

     Camilo Maria 

 

Camilo Martins de Oliveira