CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA
Minha Princesa de mim:
A um questionário sobre as razões de escrever, à pergunta «Porque é que escreve?», Saint-John Perse respondia em 1955: «Para viver melhor». Qualquer poeta saberá que aí está tudo dito. Dei com esta confissão, dois ou três anos depois, mal conhecia a figura do brilhante diplomata Marie-René Alexis Saint-Leger Leger, nascido na Guadalupe, em 1887, numa família de nobreza francesa, que ali se fixara havia dois séculos, e que regressaria definitivamente a França, doze anos depois desse nascimento do futuro embaixador de França e prémio Nobel de literatura, com o pseudónimo de Saint-John Perse. Ao jovem que eu então era, tal palavra gravou-se no coração: já então me entretinha a escrever para revistas e jornais vários, sem outra razão para além do gosto de partilhar, este sendo, quiçá, a melhor maneira de viver, porque se convive.
Na altura, porém, lia Claudel com alguma frequência, encontrava um ou outro livro seu sobre as mesinhas junto às poltronas em que minha Mãe, aficionada, ia relendo o poeta católico. Só quase duas décadas mais tarde, quando andava por Paris, onde ia como delegado de Portugal ao Comité de Indústria da OCDE, descobri mesmo Saint-John Perse, por poemas seus publicados na Nouvelle Revue Française (NRF) da Gallimard, e sobretudo quando esta editora publicou a sua obra completa em La Pléiade, volume que adquiri em dezembro de 1972, ano da sua edição, e ainda hoje conservo. Foi aí que soube também da amizade de uma vida entre os dois diplomatas e escritores, através da correspondência trocada. Talvez pela morte prematura de seu Pai, em 1907 - tinha o poeta 20 anos - Alexis Leger, que conhecera Claudel em 1905, foi-se correspondendo com o seu sénior, que o orientou para a carreira diplomática e sempre lhe foi levando (até em cartas da China!) conselhos e uma companhia fidedigna e amiga. Só não conseguiu fazer do júnior um católico convicto, ainda que o tentasse e tivesse mesmo concitado a admiração do jovem por alguns dos seus hinos religiosos: Li na NRF os três «Hinos» em que rezais. Ousaria falar-vos de admiração, dizer-vos, sem qualidades para tanto, a emoção e o voto, o anonimato no meio do qual cedemos: ao esplendor imóvel, no vosso São Paulo; ao peso, no vosso São Pedro; e no outro, o São Tiago, à sublime extremidade lógica? - assim escreve Alexis Leger, numa carta a Claudel, cônsul em Praga, datada de 15 de fevereiro de 1910, tinha o jovem 22 anos... Para teres uma ideia da força de tais hinos, traduzo-te os versos iniciais do São Paulo, aliás patrono onomástico de Claudel: Cordeiro de Deus que prometestes o Vosso reino aos violentos, / Recolhei o Vosso servidor Paulo que Vos traz dez talentos, / Cinco que Vós lhe confiastes e os outros que ele ganhou por si mesmo. / Sois um senhor cioso, austero para quem Vos ama, / Dai-lhe todavia o seu Deus, porque ele não Vos deu apenas metade do seu pobre coração! / Pai Abraão, estancai a sede deste fulminado!
Noutras cartas, Princesa de mim, voltarei a Claudel e Saint-John Perse. Por hoje, quero só referir-te que, há poucos dias, arrumando e destruindo papéis velhos, dei com uma tradução, escrita em Paris, em papel timbrado da OCDE, que fiz dum poema do Saint-John Perse, publicado na NRF, em setembro de 1971. Talvez por me ter seduzido uma linguagem poética nova para mim. Aqui te la deixo:
CANTO POR UM EQUINÓCIO
Trovejava naquela noite, e sobre a terra dos túmulos eu ouvia retumbar
essa resposta ao homem, que foi breve, e estrondo apenas.
Amigo, o aguaceiro do céu esteve connosco, a noite de Deus foi a nossa intempérie, e o amor, em todos os lugares, regressava às suas nascentes.
Sei, vi: a vida regressa às suas nascentes, o raio corisco recolhe as suas ferramentas nas pedreiras desertas, o pólen amarelo dos pinheiros junta-se nos cantos dos terraços, e a semente de Deus vai encontrar-se no mar com as toalhas malvas do plâncton.
Deus espargido encontra-se connosco na diversidade.
Ó Rei, Senhor do solo, olhai que neva, e o céu está sem choque, livre a terra de qualquer albarda: terra de Seth e de Saúl, de Che Huang-ti e de Cheops.
A voz dos homens está nos homens, a voz do bronze no bronze, e algures no mundo onde o céu não tinha voz e o século não se precavia
vem ao mundo uma criança de que ninguém conhece a raça nem a classe,
e o génio bate pancadas certas nos lóbulos de uma fronte pura.
Ó Terra, nossa Mãe, não vos preocupeis com essa raça: o século está pronto, o século é multidão, a vida segue o seu curso. Um canto em nós se ergue, que não conheceu a sua nascente nem terá estuário na morte:
equinócio de uma hora entre a Terra e o homem.
Camilo Maria
Camilo Martins de Oliveira