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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA


Minha Princesa de mim:

  

   O tema da edição de outubro de 2016 da Revue des Deux Mondes é a saudade do Rei, La Nostalgie du Roi. Logo a abrir, o editorial assinado pela diretora da revista, Valérie Toranian, recorda uma declaração do mais jovem e mais moderno dos ministros de esquerda, Emmanuel Macron, estrela ascendente do PS francês, ao semanário Le 1, em 8 de julho de 2015: Há no processo democrático e no seu funcionamento um ausente. Na política francesa, esse ausente é a figura do rei, cuja morte - penso eu fundamentalmente - o povo francês não quis. O Terror cavou um vazio emocional, imaginário, coletivo: o rei já não está cá! [...] Todavia, o que esperamos do presidente da República é que ele ocupe essa função. Tudo se construiu sobre este mal-entendido.

 

   E a editorialista prossegue perguntando a que é que essa tal ausência dá nome? Deceção, desconfiança, lassidão, para com a classe política e o executivo? Mas também o sinal de que a nossa época, que virou costas ao sagrado, não cessa de lhe sentir a falta e tenta compensá-la evocando os valores que tem dificuldade em definir. E cita então Régis Debray, filósofo agnóstico que, neste mesmo número da revista, assina um artigo (Que faut-il entendre par sacré?). Dois trechos: quando uma sociedade sente fragilidade, possibilidade de naufrágio, risco de abandono, o seu primeiro reflexo é consagrar, para consolidar, reafirmar, fortalecer...   ...nos tempos hodiernos, só é legítima e valorizadora, nos nossos meios oficiais, a linguagem dos valores, esse adoçante "cidadão", que é, para o sacro cívico, o que Walt Disney é para Sófocles, a Nutella para o creme inglês, ou o McDo para o restaurante... O que Debray quer salientar é ter-se posto fora de moda e uso a noção do sagrado, substituindo-a por sucedâneos, já que o sacro se tornou tabu por se definir como o que legitima o sacrifício e interdita o sacrilégio...   ... Já não temos qualquer vontade de nos sacrificar seja pelo que for, e detestamos visceralmente os interditos, a não ser quando temos a gloriazinha de os violar...   ...no fundo, conjuramos o medo ou o embaraço que hoje suscitam o amor sagrado da pátria e outros versículos republicanos que nos cheiram demasiadamente a terra e a mortos, ao cântico das armas e à hecatombe dos corpos. Assim se ausenta o sagrado dos nossos discursos políticos, e é proscrito dos nossos textos legislativos...   ...os nossos infelizes ministros, para se adaptarem aos ares do tempo, ao jeito da moralita, complemento do reino dos números, barram o pão dos seus discursos com os "valores da República", e percebemos porquê: esse doce não custa nada. Os nossos valores não têm penalizações. Não obrigam a nada de sério nem de preciso, pois são desprovidos de infrações, prestação de contas e sanções, enquanto que onde há sagrado estipulado há imperativo categórico, com coercivo e obrigatório. O valor é mole, o sagrado é duro. O valor agrada a todos - é a função do kitsch e o recurso dos políticos. O sagrado afasta. 
 

   Outros autores, como Jacques de Saint Victor, professor universitário em Paris, evocam a figura do general De Gaulle: Em 1958, em razão da incapacidade do regime de partidos para resolver a questão argelina, o general de Gaulle conseguiu pôr fim ao "parlamentarismo absoluto" (Raymond Carré de Malberg). A Constituição de 1958 instituiu o que alguns juristas, como Maurice Duverger, designaram de "monarquia republicana". Recordo o significativo título do livro que Duverger publicou pela Robert Laffont em 1974: La Monarchie républicaine. Comment les démocraties se donnent des rois. E o historiador Jean-Christian Petitfils, autor de vasta obra escrita, incluindo as biografias de quatro reis de França (todos eles Luís: XIII, XIV, XV e XVI) assina um interessantíssimo artigo (De la monarchie absolue à la monarchie impossible), que é também uma reflexão sobre a soberania e o seu exercício. Traduzo-te, Princesa de mim, o trecho final: Quanto a Charles de Gaulle, deitará sobre a monarquia hereditária a última pazada de terra, criando a sua "monarquia republicana", que dura há quase 60 anos, e da qual os franceses, agarrados à personalização do poder e à eleição do seu presidente por sufrágio universal, não estão dispostos, diga-se o que se disser, a desembaraçarem-se. Adeus estremecimento sagrado da bandeira da flor de lis! Doravante, segundo o famoso dito de Charles Péguy, "a república única e indivisível é o nosso reino de França!"

 

   Este paradoxal gosto por figuras tutelares numa sociedade de forças populares e politicamente democrática, para além da presença invisível do prestígio do passado, é um elemento incontornável de uma certa tensão francesa. Falar-te-ei adiante, Princesa, de outros sintomas ou contradições do presente mal-estar gaulês. Por agora deixo-te esta resposta de Emmanuel Le Roy Ladurie à pergunta "E Charles de Gaulle?"  que lhe foi feita pela revista: Aí, estamos noutra dimensão. De Gaulle é uma mistura extraordinária de Joana d´Arc, de Henrique IV e de Luís XIV. É o género de figura excecional que encontramos uma vez por século, e às vezes ainda menos... Neste preciso momento em que te escrevo, ocorre-me, não sei porquê, que quiçá o grande De Gaulle tenha optado pela solução que deu ao problema argelino por pensar que aquele povo não era, não podia ser francês. Pois foi ele que afirmou, em 1959: Nós somos, antes do mais, um povo europeu de raça branca, de cultura grega e latina e de religião cristã... Enganava-se: basta vermos a seleção francesa de futebol na tv, ou olharmos para a composição demográfica da França hodierna, para percebermos que mais perto da realidade estava Éric Besson, gaulista e ministro da Imigração, Integração e Identidade Nacional, ao dizer, em 2010, que a França não é nem um povo, nem uma língua, nem um território, nem uma religião; é um conglomerado de povos que querem viver juntos. Não há francês de raiz, há tão somente uma França de mestiçagem.
 

   Sei bem que muitos franceses, e não só, não concordarão com tal ideia. Também sei que a realidade presente - e a sua evolução étnica e cultural - é sobretudo uma interrogação, quiçá factor de mal-estar. Mas poderá evitar-se? Está aí. Le Magazine Littéraire, na sua edição de outubro de 2016, em secção oportunamente intitulada L´esprit du temps, debruça-se sobre vários livros agora publicados, todos, afinal, pretendendo responder à questão Qu´est-ce qu´être Français? Ali respiguei alguns trechos de prosas diversas, que aqui te traduzo, com intenção de nos fazer pensarsentir melhor a dimensão humana das diferentes condições, o tempo e os modos vários das nossas circunstâncias. Magyd Cherfi é vocalista do grupo Zebda, e argelino de nascimento. Publica agora um livro intitulado Ma Part de Gaulois, onde escreve: Sempre quis ser francês. Sinto-me pirenaico, sou flaubertiano, respiro só pela cultura francesa. Até ao dia em que percebi que não ser branco era não ser francês. Desde então, passo o tempo a tentar sê-lo um pouco menos. Decidi tornar fortaleza o que pensei ser uma maleita: o esquartejamento...   ... Que símbolos há, na nação francesa, para que eu, filho da Argélia, nela me reveja? Quando a equipa da Argélia ganha um jogo de futebol e os jovens do bairro desfilam nos Campos Elísios levantando a bandeira argelina, isso choca-me. Mas pode ser-se francês arvorando a bandeira argelina. Devemos declarar-nos cosmopolitas e redefinir uma identidade francesa que não seja estática. Houve gauleses, mas já não há. Há franceses. Então, o comunitarismo já não será um problema: deste, aliás, apenas existem farrapos alimentados pela frustração.
 

   Denis Tillinac, no prólogo ao L´Âme française (2016), escreve algo diferente, uma achega ao título desse seu livro: A França, parece-me, é mais de direita nas profundezas e mais de esquerda nos humores. Quando o estalinista Aragon, numa ode à glória do seu partido, se descobre patriota em 1944, não é a França "republicana" que os seus versos invocam, mas a França imemorial, logo sempre igual: "Vejo Joana correr, Rolando toca a trombeta". Tal como acredito na realidade da clivagem, assim aprecio esses momentos em que a trégua das lutas políticas nos permite saborear em conjunto a felicidade de ser francês. O mesmo Tillinac dirá que Cioran não tinha razão ao afirmar que uma pátria é uma língua e nada mais, pois ela é também outra coisa. Mas a argelina Kaoutar Harchi, no seu Je n’ai qu´une langue, ce n´est pas la mienne, escreve: A França é uma nação literária, onde se dá uma forte fusão do ideal nacional com uma língua. Esse magistério vai muito para além do território. E diz mais, acrescenta que os escritores argelinos se tornaram escritores franceses pela resistência e pela relação de forças. Cada vez mais, a França não é percebida como o território colonial, mas como o território da liberdade. Aqueles escritores acham-se franceses, sem por isso quererem viver em França. A nação literária não morreu, mas deslocou-se para fora de França.
 

   Tudo isto nos dá muito para pensar, Princesa. Vivemos, na Europa e não só, tempos de mudança, com ameaças de afrontamentos, mas também com promessas de entendimentos em terrenos onde consigamos acertar referências. A esta luz, a cultura ganha nova dimensão e importância nas nossas vidas. As artes e a música, a literatura, podem ajudar-nos a contruir a paz.
 

   E, também, o pragmatismo do bem, a prática do mandamento evangélico: amai-vos uns aos outros. Sermos capazes de um olhar para os outros e os problemas de todos nós, olhar que veja mais longe e mais certo do que os nossos preconceitos. Eis o que nos propõe o atual diretor executivo da conceituada revista americana Foreign Affairs, Jonathan Tepperman, diplomado em direito por Oxford e New York, num livro ora publicado (The Fix: How Nations Survive and Thrive in a Worl in Decline). Aí identifica uma dezena de problemas mais ou menos universais, como a desigualdade, a imigração, a guerra civil, a corrupção e a paralisia política. E defende que serão resolúveis se os líderes agirem com coragem e diligência. Dá alguns exemplos ilustrativos: a Bolsa de Família do presidente Lula da Silva, que tirou muita gente da miséria extrema, distribuindo pequenas somas a mães, para alimentarem e educarem os filhos; os líderes democráticos da Indonésia depois de Suharto, que conduziram políticas de erradicação do fundamentalismo islâmico. O bem querer, a solidariedade e o bom senso, afinal, ainda fazem sentido.


Camilo Maria 

Camilo Martins de Oliveira