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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

   Minha Princesa de mim:

 

   Acho graça: com a divulgação que fazes de algumas das minhas cartas, muitos amigos me perguntam pela "Princesa de mim", como se eu fosse dono dela. Mais acertariam se discursassem também em sentido inverso, pois que digo "Minha Princesa de mim". Até já me ocorreu responder-lhes que eu talvez seja, simplesmente, "Princesárquico"... Mas já falei de tudo isto, faz anos que expliquei como afinal continuei as cartas do meu antigo homónimo - e predecessor na família - à sua, dele, "Princesa de mim". As tais de que traduzi algumas, a serem brevemente publicadas em livro ou cadernos... Talvez por nada mais, além desta necessidade íntima de me expor à carga do meu passado, quero dizer, de reconhecer em mim o que antes de mim já era, isso que será, ou é, parafraseando Simone Weil, a filósofa, simultaneamente, pesanteur et grâce... Aí, quiçá, possa descobrir esse misterioso elo genético, chamado memória, que é o segredo mais eloquente da condição humana. Mas não quero comover-me, volto a falar-te de outras estranhas saudades.

 

   No número deste mês da Revue des Deux Mondes - de que te falei em carta anterior - surge também um artigo de Sébastien Lapaque, jornalista no Fígaro e no Monde Diplomatique, além de escritor por responsabilidade própria, com o título curioso de La République et le Roi Caché. Aí, retoma o que escreveu Emmanuel Macron, ministro socialista no governo Valls, no semanário le 1, de 8 de julho de 2015. Continuo aqui esse texto de Macron, que, se estiveres lembrada, rezava assim: O Terror cavou um vazio emocional, imaginário, coletivo: o Rei já cá não está! E eis o que então acrescenta: Tentou-se depois reinvestir esse vazio, colocar nele outras figuras: são os momentos napoleónicos e gaulistas, designadamente. No tempo restante, a democracia francesa não enche o espaço. Vemo-lo bem, com a interrogação permanente acerca da figura do presidente, que se faz desde a partida do general de Gaulle. Depois dele, a normalização da figura presidencial reinstalou um assento vazio no coração da vida política. Contudo, o que esperamos do presidente da República é que ele assuma essa função... Para o próprio autor do artigo, Sébastien Lapaque, a França reclama um homem em redor do qual os seus filhos se possam reunir. Nenhum desses super-homens com que muito se sonhou no século XX, mas um homem como os outros, no qual a Idade Média cristã muitas vezes reconheceu Cristo. Um pai, um irmão, um vizinho. "O primeiro que aparecer", explicava maliciosamente Jean Paulhan, que preferia entregar os seus destinos a esse tipo de homem, do que a um hábil arrivista, no zénite do poder após muitas renunciações e manobras. E, penso eu, Princesa, que vale a pena traduzir-te aqui um trecho de Paulhan, tirado de Choix de Lettres, 1937-1945, Traité des Jours Sombres (edição de 1992, Gallimard): Um rei é precisamente um vizinho, não tem de ser especialmente inteligente (e em geral não é), nem especialmente genial ou corajoso, é um homem como vós ou como eu, e admitindo que ele é rei, e amando-o como tal, admitimos que qualquer pessoa pode governar, o que é o sentimento democrático por excelência... [Ocorre-me - cito de memória - um dito de Paulhan, algo assim: "o próprio da evidência é passar despercebida"... Homem curioso, resistente preso pela Gestapo e, mais tarde, acérrimo defensor da Argélia Francesa, fundador da Nouvelle Revue Française, prefaciador de Histoire d´O, e amante da respetiva autora, que escreveu o livro para ele, membro da prestigiada Académie Française, ocupando o assento n.º 6, em que, à morte, lhe sucedeu Ionesco, o que também pode ser visto com alguma benevolente malícia...]

 

   Estas cartas que te escrevo não são discursos, são deambulações... Mas quero voltar ao tema da minha carta anterior, onde relacionava (i)legitimidade do poder político e crise de identidade nacional. Tocando nisso, respigo, do artigo do Lapaque, um texto pertinente do historiador Raoul Girardet (em Mythes et Mythologies politiques, Le Seuil, 1986): Parece que temos o direito de falar em crise de legitimidade quando, às questões levantadas acerca do exercício regular do poder, as respostas deixam de ser evidentes, de se imporem como "pertinentes e peremptórias". É então que o dever de lealdade perde o seu valor de exigência primeira. Que, silenciosa ou violentamente, se desfazem ou se quebram os laços da confiança ou da adesão...  ... O poder, os princípios sobre que assenta, as práticas que põe em funcionamento, os homens que o exercem ou incarnam, são doravante ressentidos como "outros", fazem figura de inimigos ou de estrangeiros... E tal é mesmo a situação de vacuidade que a França teve a originalidade de ter conhecido com especial frequência no decurso dos dois últimos séculos da sua história...

 

   Sabes bem como, no fundo de mim, não passo de um pobre idealista. Só não serei lunático porque, contrariamente a Calígula, nunca exigi a lua a minha mãe. Mas, quase no mesmíssimo sentido em que o Aragon dizia que a mulher era o porvir do homem, também eu pensossinto que certas utopias são, afinal, os não-lugares a que teremos de chegar. Eu talvez seja, minha Princesa de mim, animal de espécie em vias de extinção: um conservador-progressista. Não renego nada do que me fez e faz, antes o interiorizo mais e medito. Sempre na esperança de lhe encontrar o tesouro escondido, latente, como semente coberta de terra, para dar fruto. Procuro responder à lição da parábola dos talentos: o pouco, ou muito, que nos foi dado não é para ser ciosa e teimosamente guardado. É para dar fruto. Acontece-me pensar que, de uma perspetiva individualista e psicológica, uma pessoa totalitária não se define por forte identidade própria, mas pela ânsia de que todos tenham a mesma. De um ponto de vista político, ou do exercício do respetivo poder, tal levará às perseguições consideradas necessárias ao apagão das diferenças intoleradas, ou à propaganda que vise a desejada formatação dos povos. Neste particular, e nos casos europeus, o ocaso dos antigos regimes monárquicos e o vazio deixado pela ausência das figuras tutelares e históricas dos soberanos por direito divino e aclamação popular abriram portas à democracia romântica, que ao passado foi procurar os fundamentos e os moldes das identidades nacionais. Todos sabemos como evoluíram tais nacionalismos, inclusive a afirmação territorial de impérios coloniais, e em ideologias de superioridade de raças, de culturas, ou, simplesmente, na crença de papéis históricos relevantes e de missões civilizacionais. Se recordarmos tudo isso, Princesa de mim, compreenderemos melhor as crises de identidade presentes, com latentes ressentimentos e revanchismos. Não só no mundo islâmico mediterrânico, mas também nas nossas pátrias cristãs. Crises tanto mais difíceis de ultrapassar, e riscos tanto mais ameaçadores da paz, quanto a condição das economias da maioria dessas sociedades não dá sinais de melhoria, com alguma degradação dos benefícios sociais. Num quadro de globalização dos problemas enfrentados, quer por via dos rapidíssimos avanços da possibilidade de comunicação, quer por força dos fluxos migratórios.

 

   Acresce que questões deste teor e ordem de grandeza não são abordáveis apenas por critérios ou teorias políticas e diplomáticas, já que o modo como as diversas populações e grupos sociais as encaram tem sobretudo a ver com o modo como sentem afetados os seus interesses e aspirações, as suas condições de vida. Muito os separa e antagoniza, desperta-lhes receios e desconfianças, medos e ódios. E a situação geral das culturas e convívios - que podia e devia ser pacífica e mutuamente enriquecedora - vai sofrendo, no tempo e espaço das pessoas, constrangimentos propícios a movimentos perturbadores da serenidade necessária à busca de ambientes que permitam que, no reconhecimento autêntico e respeito das identidades próprias e das naturais diferenças, encontrar soluções justas. Nesse sentido, devo estar atento à constante mudança das circunstâncias e à cultura e realidade dos outros, ainda que me reconheça nas palavras de Jean Yves Riou, diretor da CODEX, revista de história, arqueologia, cultura e património, que nos fala de 2000 anos de aventura cristã: Num mundo que hoje se tornou plural, não se trata de erguer frente a frente identidades concorrentes mas, antes, de fazer uma aposta: só as identidades reconciliadas consigo mesmas favorecem o encontro e o diálogo entre as culturas e entre os homens. Há toda uma herança para ser reconquistada. Não para ser levantada e imposta contra ou acima de outras, nem constituída em definição sectária. Mas para que nós mesmos entendamos melhor o caminho que percorremos antes de por cá andarmos, com seus acertos, desvios e sobressaltos, de modo a vislumbrar melhor os passos que devem ser os nossos numa nova circunstância. Escandalizado com o que tem visto em cenas do debate político francês (e não só), Guy Sorman, autor do livro J´aurais voulu être français, escreveu recentemente: A febre identitária que se apodera do debate político é um horror, é a máscara do racismo e da xenofobia. Não existe a identidade no singular. A França e os franceses são complexos e variáveis; a cultura é o que evolui, só os cemitérios são imutáveis... E relembra a denúncia que, em 1927, Julien Benda fazia da adesão de alguns intelectuais a ideologias como o nacionalismo reacionário: Benda escrevia que se reconhece um intelectual por colocar o imperativo moral acima de qualquer ideologia, e não se exprimir a não ser em nome dessa moral, sem espreitar a aprovação, a popularidade, o poder. Pois bem: o imperativo moral é evidente, é reconhecer o direito imprescritível à diferença, seja ela religiosa, cultural, étnica, sexual... O imperativo moral exige acompanhar os humildes, os danados da terra, que mais vezes se chamam Aïcha  ou Saïd do que João Paulo ou Kevin. Dantes, chamavam-se Luigi, Wenceslau ou Raquel. Todos se tornaram bons franceses: mudaram a França, tal como os romanos tinham metamorfoseado os gauleses.


   No fundo, Princesa, o que te quero dizer é como, no meio disto tudo, eu sinto que o eixo do nosso destino deverá mover-se no sentido de podermos ser melhores cristãos e portugueses. Não in illo tempore, mas no tempo que é o nosso.

 

    Camilo Maria

Camilo Martins de Oliveira