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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA


Minha Princesa de mim:
 

   Já te falei na tradução, para português, diretamente do original grego, da Bíblia Grega que, além de grande parte da chamada Bíblia dos Setenta - textos vertidos para a língua helénica, na judeo-helenística Alexandria, por sábios judeus, a partir de originais hebraicos - inclui ainda outros livros da Bíblia Hebraica acolhidos pelo cânone católico, mas que foram originalmente redigidos em grego, tal como todos os vinte e sete do Novo Testamento.  Tradução portuguesa esta empreendida pelo conceituado professor catedrático de Coimbra, especialista em cultura clássica, Frederico Lourenço. A publicação desta Bíblia em versão direta do grego para o português inicia-se pelos quatro evangelhos. Adquiri e li um exemplar desse primeiro volume da obra. Nada digo, nem me pronunciarei, sobre a qualidade da tradução: o Professor Frederico Lourenço conhece infinitamente melhor o grego clássico do que eu. Como e calo. Ponto final. Por outro lado, devo dizer-te que concordo com uma observação de Paulo Mendes Pinto, da Universidade Lusófona, publicada na edição do Jornal de Letras de 23 de dezembro de 2016: Com o trabalho de Frederico Lourenço, passamos a ter mais que uma nova edição da Bíblia, passamos a ter uma edição descomprometida de uma visão religiosa. Não que para a História da Bíblia toda e qualquer ligação religiosa não seja importante, mas hoje, mais que nunca, urge perceber que ela é um património que não se esgota no campo da crença e das afirmações de fé.

   E, já agora, deixa-me acrescentar que, tratando-se de uma tradução literária criteriosa, exercitada através de uma colocação dos textos na cultura em que foram produzidos e na gramática da língua em que foram escritos, o trabalho científico do seu autor não impede o mesmo, nem o leitor, de, no seu próprio foro interior, despertar para qualquer sentimento religioso. Aliás, testemunho claríssimo disso é o que Frederico Lourenço diz em página de Diário, editada no mesmo número do Jornal de Letras. E fá-lo com uma franqueza honesta, apetece-me dizer que é very candid, como os ingleses se referem a alguém muito franco e verdadeiro. Irei todavia respigar três passos desse texto, que o autor intitulou Até ao fim da rua.  Por perspetivas diversas, qualquer deles toca em questões que, volta e meia, me ocorrem e te tenho confiado. Mas vamos aos textos de Frederico Lourenço, pois falam por si e revelam o seu próprio enquadramento:

 

   1. Existe, por exemplo, toda uma bibliografia curiosíssima que procura demonstrar que Jesus nunca existiu. Os modernos paladinos dessa teoria - só vale a pena nomear os menos irrazoáveis, como Robert Price ou Richard Carrier - são no fundo herdeiros de ideias que já vêm desde o Iluminismo francês, quando Charles Dupuis começou a publicar a sua "Origine de Tous les Cultes ou Réligion Universelle em 1793. No entanto, os padrões pagãos nos quais esses autores procuram encaixar Jesus são tão forçados! E quem diz Jesus, diz outras figuras que o Novo Testamento nos dá a conhecer: desde logo, Paulo. Para alguém que, como eu, conhece bem a Cultura Grega clássica, não é imediatamente óbvio o paralelismo Perseu / Jesus, Adónis / Jesus, ou Penteu / Paulo que estes autores querem "provar", explicando assim as narrativas do Novo Testamento como invenções baseadas em mitos pagãos. Quando um autor como Price afirma que Paulo na estrada de Damasco é uma recriação imaginativa da tragédia grega "Bacantes", alguém que conhece bem a referida tragédia na língua original dificilmente se pode deixar convencer.

   2. Há um poema do Fernando Assis Pacheco que diz: "Um homem tem que viver [...] / Tem que viver / cheio de luz". Sempre fui apologista da luz e inimigo do obscurantismo. No Evangelho de Mateus (5:14), Jesus dirige à raça humana uma frase para mim enigmática: "vós sois a luz do mundo". Em nenhum outro evangelho é atribuída esta frase a Jesus. No Evangelho de João (8:12), são-lhe atribuídas palavras aparentemente contraditórias relativamente à frase de Mateus: "eu sou a luz do mundo". Mas não há contradição, a meu ver. Cabe-nos a nós, seres humanos, sermos a refração da " luz de Jesus" - do mesmo modo que nos cabe passar a distribuir o amor que, segundo a 1ª Carta de João, Deus é. Olharmos para o mundo e ver em cada noticiário a refutação da frase "Deus é amor" (o que se passa na Síria, meu Deus!) não é mais do que a medida do falhanço humano. Cabe às pessoas humanas fazer esse trabalho de Deus, criar a corrente de amor, a corrente de luz. É por questões assim que continuo sempre a achar que a mensagem de Jesus é tão válida para crentes, como para pessoas de outras religiões, como para ateus. É uma mensagem para o mundo inteiro. Acho que precisamos de Jesus.

   3. Ao motivo do feriado de hoje [8 de dezembro de 2016] já falta o universalismo em que pensei ontem. Só um católico muito devoto poderá encontrar sentido na ideia da Imaculada Conceição de Maria. Muitas igrejas herdeiras da Reforma luterana viram, com desânimo, a oficialização deste dogma no século XIX como algo que veio acentuar ainda mais a divisão entre católicos e protestantes. Ainda me lembro como fiquei espantado, da primeira vez que li o Novo Testamento de fio a pavio, de não encontrar qualquer sustentação bíblica para realidades teológicas que eu achava que estariam na Bíblia (entre elas o motivo do feriado de hoje).
 

   Curiosamente, por esses dias, almoçava eu com velhos amigos, todos filhos de famílias da velha nobreza portuguesa, católicos devotos, também homens do nosso tempo, atentos a formulações e interrogações. Subitamente, um deles, jurista de formação e gestor financeiro, perguntou-me o que eu pensava da enunciação de certos dogmas, hoje em dia, pela Igreja Católica. Referia-se a homilias e artigos recentes que, precisamente, lhe pareciam corroborar afirmações que talvez já não devessem ser interpretadas como se tivessem existência intemporal, nem, muito menos ainda, como se não pudessem ser datadas e lidas no seu contexto cultural e histórico.

   Remeti-me, primeiro, para considerações de ordem geral: a proclamação de dogmas surge muito em função de clarificar uma fé comum, isto é, de manter uma unidade comunitária, ou união eclesial: exemplo paradigmático disso é o Credo, o Símbolo dos Apóstolos, o do Concílio de Niceia que, aliás, com o imperador Constantino, em 325, proclamou,sobre todas as igrejas locais, a Igreja Una, Santa, Católica e Apostólica. Católica em sentido contrário a sectária, antes porque universal. Por isso estava em sínodo ou concílio, isto é, se reunia. A minha fé católica professa-se aí, nada lhe retiro nem acrescento. Outros dogmas foram depois proclamados pela "autoridade" eclesial, sobretudo quando esta pareceu poder romper-se por desacordos de partidos acerca do que, em muitos casos, mais não eram do que devoções que ganhavam força em certos sectores da Igreja.

   Exemplos disso são dogmas como os da Imaculada Conceição de Maria - aliás frequentemente confundida com a sua virginal conceição de Jesus. Doutores da Igreja, como São Tomás de Aquino, recusavam a conclusão teológica da Imaculada Conceição. Claro que se, séculos mais tarde, quando o dogma foi declarado, o bom teólogo ainda fosse vivo, aceitá-lo-ia... tal como eu o aceito, ou seja, não fazendo dele condição necessária da minha confissão católica. [Mas, provavelmente, tampouco aceitaria que a confissão da fé cristã, ou de qualquer dogma católico, pudesse ser imposta em nome de uma Igreja que Jesus Cristo não fundou como instituto jurídico, mas convocou, eucaristicamente, como corpo de amor fraterno e ressurreição]. Tal dogma, dizia, não está no Credo, tal como ausentes estão a Assunção de Nossa Senhora - que também não tem relato bíblico canónico, mas nasce de uma devoção popular e seu imaginário, e de especulação "teológica" - nem sequer a Transubstanciação, resultado de um processo mais complexo que, aliás, no século XVI, as querelas entre Reforma e Contra Reforma levaram a polémicas escolásticas hoje difíceis de entender. Resumindo o que pensossinto, dir-te-ei que a consagração do pão eucarístico não é um ato de magia ou ilusionismo, o pão não deixa de ser materialmente pão, o Corpo de Cristo é um Corpo Místico, a Comunhão dos fiéis que, partilhando o pão de cada e todos os dias, continuam a tornar presente e eficaz a vontade de reconciliação que Jesus Cristo trouxe e que o levou ao sacrifício da própria vida. Pessoalmente, não sou adepto das chamadas "exposições e adorações do Santíssimo", por me parecerem - para o meu gosto, repito - mais  práticas idolátricas (no sentido de pretenderem consubstanciar numa materialidade um ser espiritual) do que atos de comunhão fraterna e reconciliação universal, com Deus e os homens, com Cristo, por Cristo e em Cristo. Formulando assim o meu credo e a minha devoção, não quero, nem devo, fechar o coração aos que de outro modo melhor possam sentir o Mistério Pascal. Cada um de nós tem as suas devoções, penso que a única exigência comum a todas é que, antes de rezarmos, devemos reconciliar-nos com os nossos irmãos, pois qualquer oração cristã é um ato de comunhão. Na minha próxima carta continuarei a conversa encetada há dias com aqueles amigos meus.

 

Camilo Maria 

 

Camilo Martins de Oliveira