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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

Minha Princesa de mim:

 

   José Augusto Mourão, frade dominicano, semiólogo e professor universitário (UNL-DCC), de quem já te falei, escreveu o posfácio para A Restante Vida, de Maria Gabriela Llansol, um dos três livros que, para consolo ou provocação do espírito que eu não queria ver a concentrar-se em cirurgias, decidi que andariam comigo. Serão textos difíceis, isto é, exigirão atenção, mas eis o modo que encontrei para me distrair de atrapalhações sobre as quais pouco entendo e nada posso. Em tempo de bem vinda chuva, clareou a tarde deste domingo, e fui ao fundo do jardim iluminar-me com o amarelo solar da mimosa em flor, exuberante, carnavalesca, em qualquer inverno, em pleno fevereiro. E esta é teimosa sobrevivente, a única que escapou ao tornado que nos varreu em dezembro de 2013. Cheio dessa alegria interior, vim pegar nos textos reservados, e escolhi para ti aqueles que aquela exuberância floral mais iluminou na presente leitura. Há comunicações esquisitas como estas vozes da luz que não se ouve...

 

   Mourão recorda, na senda de Llansol, o "meu" querido Mestre Eckhart, de que tantas vezes te falei e em mim sempre sustenta o indizível:

 

   A vida, como a literatura, não é um estado mas um ato. A vida feliz, escrevia Eckhart, consiste em entrar no seu próprio fundo e, chegado lá, em «agir» «sem porquê», «nem por Deus, nem para a sua própria honra, nem pelo que quer que seja, mas unicamente em consideração daquilo que é em si o seu próprio ser e a sua própria vida» (Sermão 6)... [...] A única resposta à vertigem é o ritmo. O ritmo - o ritmo poético, o batimento da língua - é uma figura. A imagem - a imagem poética - é uma figura. A língua do poeta configura-se, o poema é uma configuração. O «como» da comparação é também um «cum» - um com -,, logo uma reciprocidade, uma mutualidade. Para o artista, o mundo é o lugar de desenvolvimento das figuras. É a figuratividade do mundo que o poema diz.

 

 

   O secular não é só o profano, e o sagrado não é o equivalente de «sobrenatural», eterno ou «supra-humano». A secularidade sagrada reage contra a dicotomia das cosmovisões dualistas: o tempo agora e a eternidade depois. Tenta superar o dualismo sem cair no monismo; distingue, mas não separa. As fórmulas de samsara/nirvana/atman, theios/theopoiesis, união hipostática, Encarnação, tudo aponta numa mesma direção: os valores seculares são sagrados. Pannikar propõe a palavra tempiternidade para exprimir esta intuição.

 

   Sabes bem, Princesa de mim, quanto tenho insistido no meu muito íntimo pensarsentir o cristianismo como a incarnação de Deus, a secularização do sagrado, quiçá no cerne de um processo de renovadora transformação do cosmos, como acreditava Teilhard de Chardin. Ou frei Sérgio de Beaurecueil, solitário padre católico em Cabul, quando trazia o seu quinhão de pão partilhado com muçulmanos ao almoço e o consagrava, ao fim da tarde, na sua capelinha. O Corpo de Deus não é coisa que se exponha à reverência, antes é a comunhão dos homens no amor, sublime ação de graças, eucaristia. A nossa religião nada tem de mágico; ou, se assim quiseres, tem como única magia o incessantemente repetido gesto de Deus a querer habitar o coração dos homens. Quanto à escrita de Maria Gabriela, que aqui me trouxe a ti, lê comigo a Lição 1ª de A Restante Vida:

 

   Ana de Peñalosa chegou ao fim da vida. Ser o fim é-lhe indiferente, não tem muito sentido. Mais uma vez pensa utilizar

a escrita

que sempre lhe serviu

de laboratório

e de alquimia.

 

                                             Refletindo,

                                             disse para consigo:

                                             Não será uma arte demonstrativa.

 

A escrita,

vê-la escrever-se lucidamente,

é o fundamento deste real.

 

   Este livro que venho trazendo comigo é o segundo da trilogia Geografia de Rebeldes, que começara com O Livro das Comunidades e se termina com Na Casa de julho e agosto. No final da reedição deste, em 2003, insere a Relógio de Água, o Espaço Edénico - uma entrevista que a autora deu a João Mendes, publicada pelo Público em 18 de janeiro de 1995. Desta te transcrevo uma simples resposta da escritora, que me ajuda a pensar no que te tenho dito:

 

   Como não sou teóloga, o que vejo no texto é que há uma «presença insondável» na nossa vida. Não vale a pena ter medo dela. E tens os atributos. Não há maneira de passar em silêncio. E tens a substância. Com as palavras, não a consegues falar; mas ninguém te impede de caminhar na direção da tua imagem. Conheces outra utilidade melhor para o teu corpo?

 

   E agora, Princesa de mim, sou eu a dizer-te que não, que não conheço. Fez-se escuro lá fora, calaram-se todas as vozes dos campos. Mas dentro de mim me chama a luminosidade de uma mimosa em flor, no céu de fevereiro. Vês? Também não sou teólogo, nem coisa que se pareça. Sou um homem simples que olha para o céu a fechar-se sobre os campos. Citadino de origem, no século XXI, já sei que ele, o céu, não é uma abóbada, nada que nos cubra e obrigue - com sinais de cometas, meteoritos ou estrelas fugazes - mas algo que o nosso conhecimento ainda não sabe nem pode limitar... E tanto, ou tão pouco, me basta para contemplar e amar a infinitude de Deus. Eterna saudade que me chama, sempre a mesma, incansável vocação, mesmo falando muitas vozes. Gente que se diz muito religiosa, cheia de uma fé inamovível em dogmas definitivos, quiçá possuidora de conceitos arquitetados para encerrarem Deus, pensará que serei pouco ou nada religioso. E, na sua perspetiva, tem certamente razão. Afinal, eu acredito numa presença insondável na minha vida, como um sopro que me move e percorre o mundo todo. Esperança em que, no dia tremendo da paz, o amor mandará finalmente nisto tudo.

 

Camilo Maria

Camilo Martins de Oliveira