CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA
Minha Princesa de mim:
Um feroz amigo meu, dos antigos, dos tais que até gostamos de ver muitas vezes - mesmo quando discordamos - pegou num texto que escrevi sobre grupocentrismo português, em que citava Rúben A. e a referência deste a "atrasados culturais", e enviou-me uma carta de apreço pelo dito texto, intitulando-se, a si mesmo, "atrasado cultural".
Devo dizer que essa expressão do autor de O Mundo à Minha Procura não é da minha lavra, nem sequer corresponde a um qualquer olhar meu para isso a que, de modo equívoco ou plurívoco, por aí se vai chamando "cultura". Esta é, para mim, como sobejamente te tenho dito, uma circunstância ou, se quiseres, o ecossistema do nosso pensarsentir. Todos, cada um de nós "tem" a sua cultura, todo um sistema, mais ou menos consciente, herdado e adquirido, de valores, normas, referências, onde respira e se move a sua, nossa, de cada um, visão do mundo, bem como o nosso modo de pensarsentir o tempo em que vivemos. Tal circunstância não é adiantada nem atrasada, é como é, presente e evolutiva. Nesse sentido, parece-me também claro que a cultura de cada um poderá ser mais ou menos aberta a descobertas, ilustrações, tentativas de compreensão de si e dos outros... Assim, até em sentido etimológico, cultura ganha o significado de ato de cultivar, ou seja, é espiritícola. Mas nota bem: o homem culto não é necessariamente erudito, não é um acumulador de ficheiros e referências; é, acima de tudo, aquele que trabalha o seu espírito no entendimento do mundo. Todos nós conhecemos analfabetos cultos e eruditos sem janelas. Atrevo-me a dizer, Princesa, que isso de "fazermos pela cultura" até é uma questão ética.
Por isso me parece hoje tão importante, Princesa de mim, todos aprendermos a ter presente essa motivação da cultura como incansável labor do entendimento do mundo, precisamente porque ela não se esgota em qualquer acumulação de saberes ou conhecimentos sempre revisíveis, mas antes é um exercício fundamental da nossa liberdade de pensarsentir, isto é, da dignidade humana. As pessoas não se cultivam por decreto, menos ainda pela imposição de dogmas, nem tampouco pela banalização de modas ou mesmo outros quaisquer padrões de pensaragir corretamente. As pessoas cultivam-se pelo gosto da descoberta e o exercício do espírito crítico. A raiz de ambos tem duas faces, afinal iguais, que compõem cada rosto humano: liberdade e dignidade. Para algum espanto de gente com que converso, muitas vezes repito - quiçá lembrado do horror de Georges Bernanos à robotização das almas, temor que bebi na minha juventude - que, nas sociedades hodiernas, o bombardeamento quotidiano de "notícias" e publicidade, "conselhos" e opiniões, vai estruturando uma ditadura insidiosa e anónima que retira a muita gente a simples largueza - ou, pelo menos, o descanso - de respirar espiritualmente. Tenho ideia de que o maior problema - para não dizer o impasse atual - das nossas democracias é a esclerose da comunicação pela ausência crescente de cultura das pessoas, isto é, de educação e oportunidades de exercício do espírito crítico, condições imprescindíveis de diálogo em liberdade. Na verdade, o problema não é as pessoas pensarem pelas próprias cabeças; é tornarem-se cada vez mais incapazes de o fazer... Talvez, sobretudo, por viverem num ambiente (numa cultura) tóxico. Daí a importância crescente da animação de grupos de reflexão e diálogo, de encontro de pessoas que, graças ao progresso e facilidade dos meios de comunicação, até nem precisam de se reunir fisicamente. Retorquir-me-ás que é por vezes bastante desanimador o panorama de notícias e comentários nos jornais e revistas "on line"... Mas se pensares que ele é sobretudo revelador da incultura corrente e da leviandade irresponsável do que por aí se diz, talvez ganhes ânimo para entrares na discussão e reclamares o direito de cada um à seriedade do outro. Quando, em carta recente, te falava, a ti também, nos tais grupocentrismos, tinha ainda em mente como a censura ditatorial se exerce em tempos e modos diversos, por caminhos tão aparentemente limpos e claros, mas ínvios ou encerrados a contestatários mal vindos... E, na verdade, não creio que seja fácil enveredar pelos caminhos "oficialmente" estabelecidos, para fazermos valer uma ideia nova ou diferente, uma dissonância de qualquer daqueles catecismos. Mas não será viável tornar audíveis vozes mais independentes das "corretas" inteligências, como da balbúrdia tóxica reinante, vozes apenas mais refletidas? Deixo-te a pergunta, Princesa de mim.
Como achega à meditação de uma resposta, junto alguns estímulos de reflexão, algo paradoxais, a exigirem subtileza à nossa consideração. Quiçá eu seja um tanto conservador, na aceção do filósofo britânico Michael Oakeshott (1901-1990): Ser conservador é preferir o familiar ao desconhecido, o que já foi utilizado ao que nunca o foi, o facto ao misterioso, o verdadeiro ao possível, o limitado ao turvo, o próximo ao distante, o suficiente ao excedente, o conveniente ao perfeito. O mais curioso é este pensamento ocorrer-me quando lia a resposta do filósofo socialista francês Jean-Claude Michéa a uma pergunta do Philosophie Magazine sobre quais as "queixas" que ele teria contra a "visão siliconiana" do mundo defendida pelo patrão do Facebook, Mark Zuckerberg: É preciso muita ingenuidade para se acreditar que essa visão "siliconiana" do mundo possa contribuir de modo decisivo para a ultrapassagem dessa "atomização do mundo" e desse "isolamento do indivíduo", em que Engels via, em 1845, "o princípio fundamental da sociedade atual". Antes do mais, porque o tempo que o indivíduo "conectado" passa então a surfar de um ecrã para outro é forçosamente tirado ao da verdadeira vida comum, e portanto a essas relações humanas cara a cara que dela são o suporte privilegiado: uma "amizade Facebook" é muito diferente duma amizade real (um verdadeiro amigo é algo muito diferente de um follower!). Depois, porque esse mundo das redes sociais se organiza prioritariamente sobre um modo afinitário. Ora, o que define o pedestal antropológico fundamental de qualquer vida realmente comum, é que ela assenta no hábito psicologicamente formador de viver com pessoas - vizinhos, parentes, colegas, etc. -- que não escolhemos e que, portanto, não pensam necessariamente como nós... E, por isso mesmo, são condição essencial da nossa cultura.
Camilo Maria
Camilo Martins de Oliveira