CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA
Minha Princesa de mim:
Dizes-me que suspeitas de algum pessimismo no teor da minha última carta... Sei bem que falar da morte é, e será sempre - como o próprio tema da conversa - uma coisa incerta: até mania pode ser, mas será vício, será virtude? Olhar a morte não é, creio eu, algo necessariamente deprimente, tampouco ansiosamente exultante. É natural, tão natural como termos certezas. Melhor: mais natural ainda, porque a morte, essa, não podemos desmenti-la. Claro que o nosso olhar para ela poderá ser otimista ou pessimista: ou acreditamos que, conservados em congeladores, ressuscitaremos pelos progressos da ciência, ou, sem tais congeladores preservativos, ressuscitaremos de entre os mortos, em tempo igualmente indeterminado; ou pensamos que, simplesmente, ao darmos o triste pio, nos apagamos de vez, coisa que não nos atrai, razão pela qual nos entretemos a perpetuar memórias, em monumentos, nomes de ruas, dias festivos...
Aquilo que te disse, ou quis dizer-te, na minha carta, será melhor entendido se releres outra anterior, aquela em que te escrevia citando frei José Augusto Mourão: A vida, como a literatura, não é um estado mas um ato. A vida feliz, escrevia Eckhart, consiste em entrar no seu próprio fundo e, chegado lá, em «agir sem porquê, nem por Deus, nem para a sua própria honra, nem pelo que quer que seja, mas apenas em consideração daquilo que é em si o seu próprio ser, a sua própria vida» (Sermão 6 de Mestre Eckhart, século XIII)... ... O secular não é só o profano, e o sagrado não é o equivalente de "sobrenatural", eterno ou "supra-humano". A secularidade sagrada reage contra a dicotomia das cosmovisões dualistas: o tempo agora e a eternidade depois. Tenta superar o dualismo sem cair no monismo; distingue mas não separa.
E acrescentava eu que muito tenho repetido o meu intimíssimo pensarsentir o cristianismo como incarnação de Deus, secularização do sagrado. E podes agora ligar aqui, Princesa de mim, o final da minha carta anterior, em que refiro São Paulo que nos lembra ser o amor a maior das virtudes, que permanece eternamente, e cito a 1ª epístola de São João: Caríssimos, amemo-nos uns aos outros, porque o amor é de Deus, e seja quem for que ame, nasce de Deus e conhece a Deus... ... porque Deus é amor. E a mesma carta dirá: estas coisas vos escrevi para que saibais que tendes a vida eterna. A vida além da morte começa pelo amor antes dela. E o ser vivo é o mesmo: quem ama não vive duas vezes, vive sempre.
Camilo Maria
Camilo Martins de Oliveira
Nota: Pela curiosidade recordamos dois textos oportunamente publicados:
>> Cartas de Camilo Maria de Sarolea, 16 de outubro de 2016
>> Cartas de Camilo Maria de Sarolea, 21 de outubro de 2016