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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

Minha Princesa de mim: 

 

   Há poucas semanas, fui surpreendido pela reação de uma assistente de caixa da FNAC. Comprara um livro, ela perguntou-me se eu tinha cartão FNAC, ao puxar por este arrastei um da Bertrand que lhe caiu em frente. Diz, com maus modos: "Isto não é cartão FNAC, é da Bâârtrende!" Pedi desculpa, explicando que caíra por vir colado ao outro, que logo apresentei. E, com um sorriso, perguntei: "Porque é que diz Bâârtrende, à inglesa, um nome de origem francesa, que em francês se diz Berrtrrãnd e nós por cá vamos pronunciando Bertrã?" Resposta gritada: "Eu digo como quiser, você não tem nada a ver com isso!" Paciente reação minha: "Olhe que nenhum de nós pode dizer as palavras como quer, temos de dizê-las para serem entendidas..." Seguiu-se um disparate de berros, com afirmações tão substanciais como "Nem ao meu marido eu admito que me corrija, ouviu?"

 

   Esqueci o episódio, nem pedi livro de reclamações. Mas fui moendo o sentido da ignorância teimosa, pensando quão facilmente se ouve, hoje em dia, dizer, repetir, reproduzir, divulgar os mais diversos disparates, sem qualquer motivação de instrução, verificação, correção ou simples procura de entendimento. "Aí vai disto Eu é que sei!" parece ser o grito cultural na moda... Há poucos dias, três conhecidas e reconhecidas personalidades televisivas batiam o papo acerca de cinema:

 

 "Lembram-se desse grande filme, Casablanca, com o Humphrey Bogart e aquela estrela maravilhosa..." E todos em uníssono: "A Lóren Beiquel!", assim mal pronunciando o nome da Lauren Bacall, ainda por cima mal dado à parceira do Bogart naquela fita, que era, simplesmente, a Ingrid Bergman. Pouco depois - estava num dos raríssimos dias em que vejo alguma televisão - reparo que uma legenda em português traduzia hand writing por ortografia... E por aí fora, até aos sisudos e "responsáveis" jornais económicos que vão traduzindo ingenuity (= engenho, coisa de génio) por ingenuidade. Et j´en passe, para não ter de te falar da ignorância propriamente dita, seja qual for a língua utilizada para a transmitir.

 

   Vêm-me estas rabugices de velho relho, por ter lido na cama, na passada noite, um artigo de José Pacheco Pereira, no Público de 3-4-2017, intitulado Nó Górdio, e outro do professor Tom Nichols, na revista Foreign Affairs (Março-Abril-2017) com o longo título de How America Lost Faith in Expertise - And Why That´s a Giant Problem. Consolou-me sentir que, afinal, encontro vária e pensante companhia para as minhas - tuas tão conhecidas  --  cogitações sobre cultura, comunicação, confiança, memória, rigor e humildade (ou a falta crescente e esquecimento de tudo isso) nas nossas sociedades hodiernas. Não vou remeter-te para cartas minhas, nem mesmo transcrever-te textos delas. Fico-me pelos autores que me acompanham   a solidão nestes meus achaques quotidianos de algum desgosto pela multiplicação das asneiras, sem que lhes acuda espírito crítico nem capaz preocupação com o sentido do que se vai atirando por aí... 

 

   Pacheco Pereira encabeça o seu artigo pela afirmação de que o problema atual da ignorância é que ela nunca teve tão boa imprensa, tão bons defensores. E prossegue: Dedicado à memória de José Medeiros Ferreira, que uma vez, numa entrevista, falou do "nó górdio" a uma jornalista que lhe disse que não sabia o que era e recebeu como resposta: "Se não sabe, devia saber". E, mais adiante, diagnostica: Não nos devemos iludir quanto ao valor que a escola, a universidade, a sociedade, a comunicação, -  já para não falar das chamadas "redes sociais" - e a política dá hoje às humanidades e estudos clássicos. Esse valor é quase nulo. Pelo contrário, é entendido como um conhecimento inútil, que justifica o corte de financiamentos, a colocação no último lugar da fila, quando não da extinção curricular, das disciplinas do Latim e do Grego, que conseguem ficar atrás da filosofia. Por mim - como já repetidamente fui escrevendo, inclusive em cartas para ti - acredito que o saber não ocupa lugar, sobretudo se considerarmos que ele não é essencialmente erudição mas a sementeira que produz as raízes do nosso espírito, donde brotarão ramos de conhecimento, e, antes deles, o tronco que é a faculdade de ajuizar, algo muito marcado pela cultura que nos deram, isto é pelo nosso modo de laborar a inteligência. Em vez de terra lavrada, adubada e semeada, a nossa cabeça é cada vez mais um oco vaso de vidro onde todos os dias se põem flores colhidas em "sites" que por aí abundam, sem origem nem rega conhecidas. Quando murcham, por aí se apanham outras... O que quero dizer é que a "cultura" não é mais do que o cultivo que cada um de nós faz do seu espírito. 

 

   O artigo do professor Nichols, Princesa de mim, traz-me outras preocupações que, afinal, me reconduzem à efeméride com que te abria esta carta, tornando o simplesmente ridículo ou despiciendo em algo talvez considerável. Começa assim (traduzo): Em 2014, depois da invasão russa da Crimeia, o Washington Post publicou os resultados de uma sondagem que perguntava aos americanos se os Estados Unidos deveriam intervir militarmente na Ucrânia. Só um em seis inquiridos conseguiu localizar a Ucrânia num mapa; a média das respostas errava por mais ou menos 2500 quilómetros. Mas esta falta de conhecimento não impediu as pessoas de expressarem pontos de vista. Na verdade, os respondentes favoreciam a intervenção na proporção direta da sua ignorância. Dito de outro modo, as pessoas que pensavam que a Ucrânia estava situada na América Latina ou na Austrália foram as mais entusiastas a favor do uso, lá, de força militar.

 

   No ano seguinte, o Public Policy Polling perguntou a uma ampla amostragem de eleitores democratas e republicanos se apoiariam o bombardeamento de Agrabah. Cerca de um terço dos republicanos respondeu que sim, contra 13% que se opunham à ideia. As preferências democratas foram "grosso modo" inversas: 36% opunham-se, 19% eram a favor. Agrabah não existe. É um país de ficção no filme de 1992, da Disney, Aladino. Os liberais berraram que a sondagem revelara as tendências agressivas dos republicanos. Os conservadores retorquiram que ela mostrara o reflexo pacifista dos democratas. Peritos em segurança nacional não deixaram de observar que 45% dos republicanos e 55% dos democratas interrogados tinham uma visão real e definida do bombardeamento de um lugar num desenho animado.

 

   Cada vez mais, incidentes como este são mais norma do que exceção. Não é só porque as pessoas não sabem muito de ciência, política ou geografia. Claro que não sabem, mas esse problema tem barbas. Maior problema, hoje em dia, é que os americanos chegaram a um ponto em que a ignorância - pelo menos no tocante ao que geralmente se considera saber adquirido em matéria de coisa pública - é considerada realmente uma virtude. Rejeitar o parecer de peritos é afirmar autonomia, caminho para os americanos demonstrarem a sua independência de nefastas elites - e isolarem os seus crescentemente frágeis "egos" de qualquer possibilidade de lhes dizerem que estão enganados. 

 

   Tal triunfo da ignorância não é só atributo dos americanos em geral ou da senhora da FNAC em particular. Pior ainda, em Portugal, por exemplo, é o "reino" das capelinhas que se presumem muito sábias e, como os gatos, vão marcando o seu território profissional, "influencial" e mediático... Todos os dias desligo rádios e tv´s, fecho jornais e revistas vários, só para evitar o contacto pernicioso de uns quantos selecionados para nos falarem de tudo... O triunfo da ignorância também começa com o monopólio de uns gurus sobre os comentários destinados à opinião pública. Falam do que não sabem, muito do que pouco ou nunca viram e apenas vislumbraram noutros livros consultados à pressa, aparentemente convictos, sombriamente cautelosos em afastar possíveis intervenções de quem sabe, até escamoteando ou omitindo nomes e citações... Muitas vezes me lembro daquela cena de O Primo Basílio em que entra o Conselheiro Acácio:

 

   - Já esteve no Alentejo, Conselheiro? - Perguntou-lhe Luísa.

   - Nunca, minha senhora - e curvou-se. - Nunca! E tenho pena! Sempre desejei lá ir, porque me dizem que as suas curiosidades são de primeira ordem.

   Tomou uma pitada duma caixa dourada, entre os dedos, delicadamente, e acrescentou com pompa:

   - De resto, país de grande riqueza suína! 

 

   O mais triste, nisto tudo, talvez até nem seja a vaidade ridícula dos títeres da "cultura", o seu receio de menos consideração, nem sequer a respetiva "dor de cotovelo"... Nem, só por si, essa presunção de brilhar, fechando portas e janelas, apagando outras luzes...  É a auto glorificação de supostas "elites" num panorama de ignorância generalizada. Porque - fixa bem, Princesa, - se vai dividindo a comunidade possível entre o que poderia ser partilha e entendimento e, afinal, é o pensarsentir-se em privilégio e superioridade... Saber é sempre ato humilde, uma aprendizagem que é escuta e diálogo. Gosto do verbo francês apprendre, pois tanto diz aprender como ensinar. E é bem verdade que ambos são partilha. 

 

Camilo Maria

Camilo Martins de Oliveira

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