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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

Minha Princesa de mim:

 

   No seu texto de apresentação da exposição L´Au-delà dans l´art japonais (Paris, 1963), de que te falava na minha última carta, Seiroku Noma não podia esquecer o monge Mincho (século XIV-XV), pioneiro da utilização da tinta da china na pintura japonesa, e diz: As obras de Mincho e de Josetsu acentuaram o vigor do desenho, como que para mostrar a acuidade da intuição do Zen, e os seus temas foram sobretudo relativos à iluminação. Chama-se Zenki-ga a tal pintura, a palavra Zenki significando qualquer ocasião que provoque a iluminação. A variedade dos assuntos abordados por Shubun, Sesshu e outros artistas mais tardios estendeu-se às paisagens e à representação de flores e pássaros. Essas paisagens não valem apenas pela beleza natural dos sítios, ilustram o que os artistas consideravam ser o quadro puro e calmo conveniente à habitação de um monge Zen. Quando pintavam flores e pássaros, faziam-no para libertar a "budeidade" inerente às plantas e aos animais que, para esses artistas e o seu público, mais não eram do que formas da transmigração das almas. Pela mesma razão vimos surgir, entre esses monges, criadores de jardins...   ... Como o essencial da pintura Zen era surpreender o coração escondido por detrás da complexidade superficial da aparência, ela rejeitou a cor e escolheu o estilo monocromático.

 

   Muito embora também próximo da chamada "linha clara" da banda desenhada europeia, o desenho de Jiro Taniguchi, sobretudo o que ilustra a sua obra intimista, mais espiritual, inspira-se certamente na tradição Zen, quer no que toca a surpreender a alma das plantas, dos animais e das pessoas - e, como ele mesmo confessa, a força dos fenómenos maiores da natureza, incluindo os cataclismos em que ela se revela dura e perigosa -- como na procura da iluminação, isto é, do espírito escondido que anima tudo. Alguém já disse, e creio que muito bem, que Taniguchi tenta desenhar o indizível... Deus cala-se ou, pelo menos, parece calar-se: assim começa um livro do jesuíta Louis Barjon, que consegui desencantar das profundezas da minha biblioteca, a pedido de um velho amigo meu, o frei Eugénio de Paiva Boléo. O título da obra é Le Silence de Dieu dans la Littérature Contemporaine, tenho-o desde os anos 50, quando o comprei em Paris. Pensossinto que poderia, hoje ainda, entender os vários porquês das problemáticas a que o livro acode. Mas com outra distância: a minha convivência local com a cultura dita oriental induziu-me - devo reconhecê-lo - a uma aproximação diferente a questões como a do mal e da culpa, do mundo e do espírito e, sobretudo, da presença de Deus em tudo. Não deixei de ser e pensarsentir-me cristão, mas sê-lo-ei hoje de um modo diferente. O meu pressentimento do Zen japonês, sobretudo pelo que ele me deu de abraço da natureza e do nosso despojamento interior, retornou-me a Mestre Eckhart e a uma mística cristã que desde muito novo me envolve. Os Evangelhos continuam a ser, para mim, as mais comoventes narrativas da literatura mundial, mas quem, como tu, os tem lido e relido, compreenderá melhor o que quero dizer quando afirmo que, depois da minha meditação "oriental", os leio mais simultaneamente à luz de S. João Evangelista e com os olhos e o coração de S. Francisco de Assis.

 

   Todavia analisei muitas arquiteturas teológicas que tentam explicar a boa razão do mal que conhecemos, e até debati a questão, inclusive nas minhas cartas a José Saramago (lembras-te?), tal como escutei o grito angustiado da perplexidade de crentes (o próprio Jesus clamou na cruz: Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?), assim como a revolta de ateus e agnósticos (pensa no Goetz de Le Diable et le bon Dieu do Jean-Paul Sartre : Est-ce que tu m´écoutes, Dieu sourd?- perante a morte desamparada de Catherine). Mas acabo por me render à evidência do mistério que tudo é para mim. Não entendo, não sei explicar. Faço por me despojar dos meus sentimentos, revoltas e resignações, angústias e euforias. E num silêncio escuro, vácuo, espero o encontro com o indizível, inefável, porque fora do tempo e do espaço das nossas medições. E pensossinto que a minha desinvestidura, despojamento e despedimento de mim, é a porta aberta para a íntima alegria possível: a do acolhimento universal, que é o amor. Até de mim, que em tanto mal tenho comungado e ao bem apenas tenho aspirado. Deus - eis a lição da incarnação, morte e ressurreição de Cristo - está connosco, presente na partogénese da Jerusalém celeste.

 

   Escrevo-te estas linhas ao som das Pièces de Viole, 1701 (Hommage à Mons. de Lully et Mons. de Sainte Colombe) de Marin Marais, excecional compositor de peças para viola da gamba, neste registo tocadas por Jordi Savall. Foi este músico catalão que redescobriu Marais e o seu instrumento antecessor do violoncelo. O mesmo Savall - de quem tantas vezes te falei já - que, há pouco ainda, foi partilhar, com companheiros músicos sérvios, afegãos, africanos, judeus, turcos e outros europeus, sul-americanos, etc., música do mundo, com os refugiados migrantes encerrados na "selva de Calais". O Jordi tem feito diálogo de culturas através da música, e, em Calais mesmo, não tocou só para refugiados em seu ghetto, foi à cidade tocar para os seus habitantes: o objetivo da integração é que cada cultura tenha o seu espaço e fecunde a sociedade pela sua contribuição. A riqueza de um país mede-se pela sua diversidade; as sociedades fechadas tornam-se decadentes, apenas prosperam as que se abrem - disse ele recentemente. E mais adiante: A intensidade dos fluxos migratórios e a falta de uma política de acolhimento eficaz levam os povos a sentirem-se invadidos no seu próprio solo...  ... Por isso toquei também na cidade de Calais, para apresentar aos habitantes aqueles que vivem perto deles. E à pergunta sobre se o Ocidente terá o monopólio da intolerância (a entrevista é atual e francesa), responde: É evidentemente necessário opormo-nos à mentalidade teocrática, à rejeição do incréu que grassa em certos países e é por vezes exportada para os nossos. Mas nós contribuímos, através de intervenções nossas, para a emergência de regimes intolerantes e totalitários, e assim também para a destruição dos países donde vêm esses refugiados. O problema fundamental não é um racismo que fosse exclusivo deste ou daquele povo, mas a incapacidade de muita gente aceitar um autêntico diálogo intercultural, o único que nos permite conhecermo-nos na paz. Ajudando os jovens a apropriarem-se da sua cultura, e a partilhá-la connosco, podemos fazer com que as coisas avancem...   ... É preciso trabalhar naquilo que amamos; se sentirmos que o resultado tem alguma utilidade, tudo muda. É por isso que não toco só nas grandes salas, mas também nos hospitais e nas prisões. Se não levarmos aos jovens a experiência da beleza, dentro de vinte anos estarão vazias as salas de concerto. É preciso trabalhar para o porvir. Sem utopia, não há criação possível.

 

   Antes de assinar esta carta, pensossinto o Papa Francisco (nome profético!) no Egipto, em convívio, sem proteção blindada. O Ernâni que, com o António Luciano, é um dos amigos do coração, com que partilhava afinidades espirituais difíceis de proclamar - e eles eram, noutras coisas, bem diferentes um do outro!  -- acreditava muito na comunhão dos santos. Ambos da minha mesmíssima idade já não precisam de instrumentos de métrica, muito menos de cálculos a prazo. Sabem melhor do que eu o que nos comove no Taniguchi, no Savall, no Francisco, e em todos aqueles que fazem da descoberta e contemplação do mundo e da vida, não pretexto de revolta, medo, culpa, angústia ou depressão, mas razão de amor ativo.

 

Camilo Maria 

P.S.- Esta noite, quebrou-se a seca persistente, choveu como Deus dá. Saí de manhã cedo, extasiei-me à vista da alegria dos campos: toda a vegetação, agradecida, cantava verdura e vida. E lembrei-me do Taniguchi, que tão bem desenhava a graça anímica dos bosques...

Camilo Martins de Oliveira